Nos primeiros três séculos do surgimento da filosofia Cristã, denominada Período Patrística, época que teriam sido elaboradas as doutrinas das verdades de fé do Cristianismo, surge o conceito de pobreza e misericórdia voltado para aqueles que viviam uma vida de miséria, abandonados à própria sorte. Numa frase de Santo Agostinho, vislumbra-se a fundamentação dessa situação, de que o supérfluo do rico é o necessário do pobre. A discrepância entre o poder de ganho e qualidade de vida entre os ricos e os pobres já reinava na sociedade daquela época. Com o passar dos tempos, surge a figura do mendigo que passa a integrar o cenário das cidades e se torna uma realidade na concretização da miséria. A alienação da sociedade se projeta na mesma intensidade, já que a miséria estampada no semelhante já não incomoda aquele que é mais abastado. E sempre perdurou a miséria entre os povos. Hoje, a pergunta que se faz quando moradores de rua são o tema de conversas em universidades ou nas residências, enquanto se vê o noticiário, é se eles são uma questão social, de saúde ou criminal?

De forma paliativa, na tentativa de se amenizar essa indiferença, somada à impossibilidade de se resolver concretamente essasituação de martírio, surge a esmola que é dada àquele desprovido de recursos mínimos de sobrevivência, à título de ajuda ou talvez até para aplacar, eufemisticamente, a sugestiva e egoística indiferença humana. De qualquer forma, o ato de dar esmola também se perpetua no tempo, enquanto não se resolve em definitivo a questão. Na medida que a civilização se aprimora, surgem as primeiras manifestações públicas e mesmo privadas, de prestar auxílio a essa pessoas em situação de miserabilidade de forma mais estruturada. A Igreja se dispôs a participar na busca de soluções de acalento para essa comunidade de miseráveis. Atualmente, sabe-se que o dinheiro dado ao morador de rua, usuário de droga, certamente vai ser usado para adquirir mais droga, o que levou a realização de algumas campanhas publicitárias, solicitando que não fosse dada essa esmola àquelas pessoas.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para fins instrumentais, traz a definição para moradores em situação de rua como sendo: “Grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de moradia convencional regular. Essa mesma definição é encontrada na lei que cuida da Política Nacional para a População em Situação de Rua de 2009. São pessoas compelidas a habitar logradouros públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para pernoitar.” É importante identificar a diferença entre o morador em situação de rua que não é usuário de crack ou outras drogas e aquele que não é usuário e está na rua por qualquer razão de infortúnio.  O Direito tem se atualizado em considerar eventuais situações envolvendo essas pessoas, para que não se faça injustiças contra quem nada deve à lei. Não se pode marginalizar àquela pessoa que vive em condições precárias, somente em razão dessa situação.

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Na evolução do Direito, que vai do Império ao contemporâneo Direito Constitucional do Século XX, a situação dessas pessoas menos favorecidas, passa a ser considerada, inicialmente, afronta a preceitos legais, dispondo que mendigar por ociosidade ou cupidez, sujeitava o infeliz a uma pena de prisão simples de dez dias até três meses. Em havendo o atrelamento dessa contravenção de mendigar com a prática de entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo a pessoa válida para o trabalho, não tendo renda que assegure-lhe meios suficientes de subsistência através do trabalho, sujeitava o autor também a uma outra contravenção penal prevista na mesma Lei de Contravenções Penais, que na verdade era o Decreto-Lei nº 3.688 de 3 de outubro de 1941, com mesma pena da mendicância. Só no Século XXI, atendendo princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988, quanto a necessidade de se respeitar a dignidade da pessoa humana, a contravenção de mendicância foi revogada pela Lei nº 11.983/09. Porém, a contravenção do artigo 59, que trata da vadiagem, continua em vigor, ainda que sem aplicação fática. Ainda assim, sob a égide do Direito, pode-se valer dessa descrição de conduta para tentar entender e separar a situação envolvendo morador de rua em dois tipos básicos: o primeiro está realmente na condição de miserabilidade e não envolvido com drogadição, enquanto o segundo, além de estar na situação de vulnerabilidade social, também está envolvido com uso de drogas, principalmente o crack. Essa visão pragmática de que o morador em situação de rua seja um contraventor em potencial, ofusca a sua real situação de excluído de uma sociedade consumista e buscar soluções somente através de medidas repressivas não têm demonstrado resultados eficazes, além de representar um desvio de finalidade da existência do Estado, que tem o dever de proteger as pessoas, garantindo-lhe um mínimo de qualidade de vida em todos os aspectos. Ainda que grande parte dos integrantes desses grupos de rua estejam na condição de egressos do Sistema Penitenciário e estariam mais propensos a prática de crimes, também esses deveriam ter passado por programas de ressocializações e só depois encaminhados ao convívio social. Infelizmente essa previsão legal fica somente registrada na Lei de Execuções Penais, sem nenhuma aplicação prática efetiva. A consequência disso é o aumento expressivo desses grupos de moradores em situação de rua em todo lugar.

Em 2011 foi criado um programa federal para tratar da questão dos usuários de crack, em situação de rua, prevendo que os Estados e os Municípios iriam aderir ao programa, pois que todos enfrentam o mesmo problema em relação aos usuários de crack. O programa prevê a atuação integrada de diferentes órgãos públicos e grupos sociais, dividindo a atuação em três eixos: social, saúde e autoridade. Com atuação mais voltada à prevenção, no combate, na reabilitação e na reintegração social do usuário de crack, o programa infelizmente não teve a adesão esperada e com as mudanças de governo, ficou abandonado na sua materialização e funcionalidade. Ainda que não seja ferramenta adequada ou eficaz para trazer resultados nessa área tão sensível, o programa produziu até então uma enormidade de dados que permitem analisar e obter conhecimentos dos acertos e dos erros registrados. Infelizmente, o programa não vem recebendo a atenção que deveria ter por parte dos governantes.

No aspecto social, pode ser invocado os mais variados indicadores para tentar explicar a proliferação da miséria entre o povo, como a deficitária distribuição de renda, falta de acesso à escola, falta de implantação de políticas públicas voltadas aos mais necessitados, enfim, uma série de medidas que até podem ser previstas em mirabolantes planos de governos, mas que não detém eficácia necessária para erradicar o problema. Se considerada somente a questão econômica, segundo estimativa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIESE, o salário mínimo deveria ser quatro vezes maior que o valor atual e mesmo assim não representaria garantia de atender o que manda a CF/88, no atendimento da dignidade da pessoa. O número de famílias que sobrevivem com até ¼ do salário mínimo per capita, que vivem na chamada “pobreza absoluta”, tem aumentado a partir de 2014, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Talvez na mesma direção, esses dados tenham alguma relação com o aumento do número de moradores em situação de rua, principalmente nas capitais dos Estados, conforme último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – 2015, indicando que somente na capital paulista, quase 16 mil pessoas encontram-se em situação de rua e esse contingente de miseráveis só aumenta a cada ano. Segundo essa mesma pesquisa, em 2012 foram contabilizados cerca de 1,8 milhão de moradores em situação de rua no país. Desse montante, somente uma pequena parcela é acolhida pelos órgãos públicos de assistência social e de saúde. Considerada a população brasileira de mais de 200 milhões de pessoas, 1,8 milhão delas até pode ser considerado um número razoável, mas ainda assim são seres humanos e o Estado tem responsabilidades constitucionais por cada uma delas. Pode até ocorrer falta de vontade política para tratar da questão, mas não se pode alegar falta de regulamentação, pois que em 2009 é promulgado o Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, instituindo a Política Nacional para a População em Situação de Rua e também seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, onde são estabelecidas princípios, diretrizes e objetivos a serem buscados.

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Na área da saúde, segundo a presidente da Organização Mundial da Saúde – OMS, o consumo de drogas é responsável por quinhentas mil mortes anuais e portanto deve ser tratado como um problema de saúde e não como situação penal. Os motivos que levam a pessoa à drogadição estariam vinculados a problemas voltados ao corpo e mente, como deficiências físicas, depressão, transtornos existenciais, familiares, entre outras situações e patologias.Na prática, não há sistema de saúde estruturado o suficiente para recepcionar e cuidar desses tipos de casos envolvendo usuários de drogas. Os poucos órgãos públicos e programas existentes, especialmente voltados para essa questão, sejam municipais ou estaduais, não conseguem atender a demanda crescente com uma medida de política pública de saúde eficiente. É comum cada tipo de instituição procurar transferir para outra de esfera distinta. O Estado passa o problema para o Município que por sua vez cobra daquele aquilo que não consegue executar. Ilustra essa situação o atual desencontro entre as políticas defendidas pelo governo estadual em São Paulo e as defendidas pelo governo municipal da capital, quanto a estratégia a ser empregada no tratamento da questão, como a internação obrigatória de moradores de rua da “cracolândia” existente em plena área central da cidade, além de mais de vinte outros locais de consumo de crack, espalhados pelo município. Essa confusão institucional privilegia o caos e ao mesmo contribui para agravamento do problema.

Dessa forma, não resolvido o problema na esfera da assistência social, nem na esfera da saúde, os casos envolvendo o crack e demais drogas ilícitas, não só o consumo, como demais condutas relacionadas às drogas,passa a ser tratado como situação criminal. Nesse sentido, a Lei nº Lei nº 11.343/06, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, traz alguns regramentos de como o poder deve atuar em relação as drogas. A lei dispõe sobre medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo ainda, normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. Considerao consumo de drogas como crime não apenado com prisão, mas com advertência, prestação de serviços à comunidade e aplicação de medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. Tema não pacífico na doutrina e jurisprudência, se consumir droga é ou não crime, o fato é que o consumo se agrava a cada dia, principalmente naqueles grupos que estão em situação de rua. Surgem as chamadas “cracolândias” país afora. Se o consumo de droga pode ser descriminalizado, já o tráfico de entorpecentes tem punição severa, com pena de reclusão que vai de cinco a quinze anos de prisão, mais multas. Muito se fala na prisão do traficante como medida eficaz para evitar o consumo pelo usuário morador de rua, porém a solução para o problema não reside na simplicidade apontada. Considerada a maior atividade ilícita do mundo, o narcotráfico requer ações multifacetárias para seu combate e resta comprovado que ações isoladas não produzem resultados esperados. A prisão de um traficante somente enseja a sua troca por algum outro ainda mais ousado. Ações de enfrentamento também têm demonstrado poucos resultados, quando não potencializam o problema, conforme tem sido registrado e divulgado pela mídia. Segregar esses grupos de pessoas também não representa medida salutar sob qualquer aspecto, principalmente o legal, visto que trata-se de seres humanos que sobrevivem na adversidade completa, não tendo mais o que perder nas suas vidas.

A situação precária envolvendo moradores em situação de rua pelo país é complexa o suficiente para indicar que eventuais soluções isoladas, descontextualizadas, não surtem os resultados necessários para a solução do problema, quando muito para amenizá-lo. Eventual solução poderia ser representada pela integração de ações e junção de esforços entre diferentes órgãos públicos que atuam nas diferentes áreas. Salutar, também seria a parceria com iniciativa privada, buscando mesmas metas e objetivos. O projeto de implantação dessas medidas pode representar ferramenta a ser eficaz e aprimorada através das experiências acumuladas durante a execução dos programas. Procurar conhecer a origem do problema, suas causas, suas implicações, consequências diretas e indiretas, enfim, esmiuçar para saber dos detalhes, por certo é possível caminho para buscar soluções concretas para um problema de abrangência mundial. Acima de tudo é preciso considerar que o morador em situação de rua, seja ou não usuário de crack, não está relacionado somente a questão social, à saúde ou à criminal, mas a todas elas ao mesmo tempo. (foto acima: Rovena Rosa/Agência Brasil)

 

QUESTÃOJOSÉ ROBERTO FERRAZ

Ex-comandante da Guarda Municipal de Jundiaí; delegado aposentado da Polícia Civil; especialista e professor de Direito Ambiental.