O nome dela era Irene. Tinha 64 anos, dois filhos criados, quatro netos e um coração que não andava lá muito confiável. No bairro, era conhecida por sempre ter um café quente e um conselho pronto. Gostava de plantas, de novela, de pão francês saído do forno e de acreditar que, apesar de tudo, o mundo ainda podia dar certo. Mas naquela terça-feira, Irene não conseguia respirar direito. Sentia o peito apertado, as mãos frias, os passos trôpegos. Foi até o posto de saúde, como orientava a propaganda na televisão: “SUS – Sistema Único de Saúde. Do Brasil. Para Todos.”
Foi recebida com um sorriso cansado da atendente, que pediu CPF, comprovante de residência e paciência. Muita paciência. Depois de explicar os sintomas, Irene ouviu, serena como sempre:
— Dona Irene, a consulta com o clínico está marcada para o dia 12 de janeiro.
Era setembro.
Ela respirou fundo, agradeceu como quem pede desculpas por atrapalhar, e foi embora. O peito doía, mas mais do que o peito, doía o sentimento de estar à margem. De ser estatística. De saber que, embora a propaganda dissesse que o sistema é de todos, na prática ele é de poucos — ou de ninguém. A saúde pública no Brasil vive um paradoxo cruel: quanto mais se fala dela, menos se sente. Quanto mais se promete, menos se entrega.
Nos outdoors, tudo parece bonito. “Mais investimentos!”, “Nova unidade inaugurada!”, “Saúde de qualidade!”. No rádio, vozes aveludadas garantem prioridade aos idosos, às gestantes, às emergências. Mas nos corredores dos postos, o que ecoa são gemidos abafados, tosses abafadas, esperas abafadas. É o Brasil do silêncio, o Brasil que espera.
Espera vaga. Espera exame. Espera ambulância. Espera laudo. Espera melhora. Espera, às vezes, morrer esperando.
A Irene que espera uma consulta é irmã do Antônio que espera a biópsia, que é primo do Jonas que espera o resultado do exame, que é vizinho da dona Lourdes, que morreu antes do atendimento chegar. Todos vivem em alguma fila. Fila de agendamento, fila de prioridade, fila de desespero.
E o sistema, esse mesmo que anuncia progresso, caminha como um boi cansado, preso num lamaçal de burocracias, interesses e descaso. A saúde pública não é feita apenas de remédios e leitos. É feita de humanidade. De presença. De tempo hábil. De olhos que olham. De ouvidos que ouvem.
Mas quem vê a propaganda não vê o corredor. Quem assina a verba não sente a dor. Quem aparece na televisão não aguarda cinco horas por uma ficha de atendimento.
Irene voltou para casa com a receita de um anti-inflamatório genérico e um encaminhamento para um cardiologista — marcado para dali a quatro meses. O médico do posto pediu desculpas. Disse que não era culpa dele. E não era mesmo. O médico estava exausto, a enfermeira sobrecarregada, a atendente desamparada.
A máquina está quebrada. E os parafusos também estão cansados. Na semana seguinte, a televisão repetia a campanha: “Aqui, o cidadão é prioridade.” Irene sorriu amargo. Fez um chá de boldo e rezou. Porque entre a fé e a fila, ela ainda confiava mais na fé. Não por escolha, mas por sobrevivência.
É difícil manter a crença em algo que sempre nos empurra para o final da linha. A saúde pública deveria ser abrigo, mas virou labirinto. Um jogo de sorte em que o prêmio é ser atendido a tempo.
E no meio dessa engrenagem descompassada, há pessoas. Gente de verdade. Gente que sente dor, medo, cansaço. Gente que não aparece nas estatísticas. Gente que tem nome, que tem netos, que tem sopas para fazer, novelas para assistir, vidas para viver. Mas que, antes de tudo, só quer ser atendida.
A saúde virou uma espera com data indefinida. Virou uma senha. Um papel timbrado. Um “aguarde”. E enquanto a propaganda pinta de cores vivas a ideia de cuidado universal, os corredores continuam cinzentos, as salas continuam cheias, os olhos continuam desesperançados.
VEJA OUTROS ARTIGOS DO PROFESSOR AFONSO MACHADO
Não se trata de culpar os profissionais. Médicos, enfermeiros, técnicos — todos resistem com o que podem. O problema está acima. Está nos gabinetes que falam em números, sem saber o peso de uma dor de verdade. Está no sistema que prefere investir em imagem a enfrentar a lama estrutural da precarização.
A propaganda diz que o SUS é do povo. Mas o povo, esse mesmo povo, se pergunta todos os dias se ainda pertence a esse sistema. Irene, nos seus modos serenos, segue esperando. Não protesta. Não briga. Apenas espera. E enquanto espera, borda panos de prato e acredita em milagres. Porque, às vezes, o milagre não é a cura. É o atendimento chegar antes do fim.

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
VEJA TAMBÉM
PUBLICIDADE LEGAL É NO JUNDIAÍ AGORA
ACESSE O FACEBOOK DO JUNDIAÍ AGORA: NOTÍCIAS, DIVERSÃO E PROMOÇÕES