TELEVISÃO É A IMAGEM DA BESTA: Uma análise dos últimos 50 anos

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Nos anos 70 ter uma televisão em casa estava fora do alcance de muitas famílias. Era o sonho de consumo de boa parte das camadas menos favorecidas, que chamávamos de classes D e E. Com o passar dos anos, tornando-se acessível, popular, começamos a presenciar determinados segmentos contra não só a este ou aquele tipo de programação, mas contra o próprio aparelho. E ainda hoje, existem grupos, inclusive religiosos, que orientam seus membros a não terem TV… uma “proibição” que já não faz sentido após a chegada da internet, que praticamente todo mundo tem em seu aparelho celular. A expressão Televisão é a imagem da besta ficou conhecida em São Paulo, num outdoor em plena Marginal do Tietê naquela época(foto). Lembro-me dele quando fiz minhas primeiras viagens sozinho à capital, um período de minha vida que já era muito mais que observador, era questionador, algo que fui desenvolvendo na passagem da infância para a adolescência. Mas o que havia de tão “terrível” com a programação há tanto tempo atrás, numa época conhecida pelo conservadorismo à flor da pele?

A censura observava exclusivamente informações de cunho ideológico e moral, evitando cenas excessivamente eróticas, embora, curiosamente, produções eróticas norte-americanas fossem totalmente liberadas, bem como os desenhos com altas doses de vingança e violência. E são nestes que entrarei em detalhes.

“Os desenhos daquela Formiga Atômica são muito bobos, parecem coisa de retardados”. Lembro-me que uma professora no primário levantou este debate na sala de aula falando mais ou menos nessas palavras. Alguns alunos estranharam, mas muitos prestaram atenção e deram continuidade ao assunto, citando outros que detestavam, como Esquilo sem Grilo etc. Eu não me manifestei, mas refleti muito, afinal, era caseiro, se não estava estudando, lendo livros e enciclopédias, estava assistindo algum filme, novela ou desenho. Por ter um espírito criador, assistia e depois recriava em desenhos (quadrinhos) nos cadernos. Criava as próprias histórias, baseadas em fatos que concordei ou discordei. Já construía minha opinião crítica. Mas os aspectos profundos, acerca dos efeitos no psicológico só brotaram na juventude. E são esses efeitos psicológicos nas crianças, assunto hoje em pauta e muita polêmica acerca da teledramaturgia atual, que naquela época não se debatia. Os adultos entortavam a boca, retiravam as crianças da frente da TV, mas assistiam e ficavam quietos.

A professora que havia levantado o debate era da classe média-alta. A escola, central, reunia alunos das classes média-alta, média e média-baixa. Com o tempo, fui notando que a construção crítica e os esclarecimentos eram compreendidos melhor pelos alunos de melhores condições sociais. E nas próprias amizades, conforme ia me aproximando de suas famílias e frequentando suas casas, fui constatando que as famílias de boa renda conduziam os filhos a mais livro e menos televisão. Além de selecionar o que poderiam assistir, era bem pouca TV às crianças. Do outro lado social, era exatamente o contrário. TV ligada o dia todo nas casas, crianças em frente ao aparelho. Dependendo do lugar onde moravam, era até por uma questão de segurança, a criança dentro de casa em vez de estar na rua correndo risco num bairro sem infraestrutura, com esgoto a céu aberto e a violência, comum nas periferias daquela época. Porém, assimilava-se o instinto de vingança e violência nos próprios desenhos! Exagero? Não!

Voltemos à questão da proibição de assistir TV da parte de algumas igrejas. Nos anos 80, um colega de escola, filho de pastor de uma igreja que assim recomenda (usar a palavra “proíbe” pode soar exagero), me proporcionou analisar os efeitos. Éramos adolescentes e ele e outro colega vinham em casa para estudar. Após os estudos ele pedia para ligar a televisão. Claro que eu atendia ao pedido de um colega… coisas da idade. Mas… e depois para tirá-lo de frente a TV? Muitas vezes ele até se esquecia da hora de voltar para sua casa. Eu e meu colega ficávamos impressionados. A gente conversando, jogando, brincando, às vezes chamávamos ou perguntávamos algo a ele, mas ele simplesmente não nos ouvia. O mais impressionante foi nas vezes em que chegava ao lado dele para dizer algo e ele não demonstrava nenhuma reação… eu observava que ele parecia estar hipnotizado com a imagem da TV. E então me lembrei do outdoor Televisão é a imagem da besta. Como um adolescente ficava hipnotizado com um programa a ponto de se desligar do mundo em sua volta? Se acontecia com um adolescente, o que se passava então na cabeça das crianças vidradas em um e outro programa? Eis o aspecto psicológico a ser estudado.

Como escritor, criador também de histórias, dramaturgia, não digo genericamente que por trás de toda ficção, em desenho ou filme, exista a predominância do nocivo, alienador ou até além, como “o mal que domina a humanidade”. Todo criador é ser humano, que possui dentro de si o bem e o mal. Baseia-se no mundo ao seu redor, naquilo que capta e aprende. Ou vivenciou. Enfim, as produções são reflexos exatos do mundo, da sociedade. Não sendo documentário, trata-se de uma ficção, uma criação artística, que como toda obra, tem seu valor. O quanto de valor, dependerá da avaliação de cada pessoa. O que eu mais valorizo? O que a obra proporcionou como diversão, humor ou lições morais? Ou mesmo, valores culturais. Peguemos por exemplo o marinheiro Popeye. Retrata o perfil de um homem daquela época, em tal profissão, de tal lugar… tirando as fantasias, do poder do espinafre, os excessos para prender o leitor ou telespectador, existem – sempre – as mensagens subliminares que chamam para o questionamento comportamental, hábitos, costumes… formando aí o desafio para separar o que o autor retratou da realidade observada e o que ele quer transmitir, muitas vezes com o desfecho produzido, ao leitor ou telespectador. Ou seja, toda obra para crianças precisa ter a intermediação de um adulto. O que ocorria somente nas camadas mais abastadas de nossa sociedade. Enquanto os pais da classe média escolhiam o que seus filhos deveriam assistir e debatiam depois o filme ou o desenho com eles, na outra camada social isto não ocorria. Primeiro porque os próprios pais não possuíam o necessário estudo para debater uma obra do gênero, depois, os afazeres dos adultos não proporcionavam o tempo necessário para pesquisar e acompanhar. Os desenhos funcionavam para segurar as crianças, não atrapalharem a mãe enquanto cuidava da casa. E à noite, então havia os programas dos adultos; a novela da mãe e o filme do casal, que não interessava debater com os filhos, caso assistissem. Isto dentro da realidade brasileira.

Por mais que Walt Disney, Hanna Barbera e outros tenham influenciado milhões mundo afora, cada cultura, em cada país, cada nicho social os efeitos foram incontáveis, muito mais se levarmos em conta o histórico de cada pessoa, a bagagem de cada criança no ambiente familiar que nasceu e cresceu. Muitos aqui entre nós dirão: “assisti todos os desenhos quando era criança, adolescente, e nenhum me influenciou, não me tornei má pessoa por ver tantas maldades nos desenhos…” Ora, desenhos, novelas e filmes são apenas alguns dos tantos itens que podem ou não influir no comportamento. Se não existissem, ou, se não existisse a tal “imagem da besta”, outras coisas poderiam influir para mais ou para menos no comportamento social. Hoje vemos muito na rede social pessoas criticando uma tal emissora, como se fosse a responsável pela degradação, alienação e até “doutrinação” de uma geração… Pois pouca coisa mudou no conteúdo dela. A TV reproduz aquilo que o povo quer, aquilo que dá audiência. Se sentimos saudade das velhas novelas, estamos sentindo saudade daquele padrão social que vivemos. E se as mudanças foram para pior, não foi somente Brasil. É o mundo que mudou. “Reality Show” é mundial, não é só Brasil. Novelas e seriados com temas populares, idem. Isto é consequência do mundo globalizado, que vai muito além do aspecto econômico – “economia globalizada”. É cultura globalizada, sem barreiras. E num mundo sem barreiras, sem possibilidade de esconder, como era fácil fazer no passado, fundamental é fazer aquilo que muitos não puderam fazer por questões de força maior; o acompanhamento com diálogo em relação a tudo que nos chega por estes canais de comunicação. Inútil tentar recriar a censura, impedir as criações ou sua divulgação. Inútil buscar um bode expiatório, relembrar as velhas profecias e a Televisão é a imagem da besta. O ser humano nesta altura, neste estágio evolutivo, trabalhou com as ferramentas que tinha em mãos. E continua trabalhando. Impossível parar.

Agora, relembremos o que minha professora falou aos seus alunos… ela não proibiu ninguém de ver TV. Não criticou emissora. Ela chamou para o debate acerca de um ou alguns desenhos, para saber o que seus alunos pensavam a respeito. Afinal, a TV veio para ficar e dali para evoluir… como temos hoje nas telas do computador, do celular… tudo está ao nosso alcance. Os desenhos evoluíram. Assim como “evoluiu” a forma de se vingar, de lutar com inimigos, de estabelecer domínios… aquela imagem do colega de escola vidrado, enfeitiçado, hipnotizado diante da velha televisão, que não tinha na casa dele, está diferente também… “evoluiu”. A lavagem cerebral evoluiu. A forma de alienar evoluiu. E a culpa é de quem? Do cinema, o precursor? Da velha TV que adentrou os lares? Da internet, que dominou o mundo? Não, não adianta buscar bestas-feras e a besta do Apocalipse. O ‘X’ da questão está naquela chamada que nunca mais esqueci: a professora questionando um dos desenhos. Desenho que milhões de crianças, adolescentes ficavam vidrados, assistiam, mas não tinham com quem conversar a respeito, fazer perguntas, criar debate. Hoje todos nós, independentemente da classe social, da bagagem educacional que carregamos, temos as ferramentas do debate acessíveis. O desafio é conseguir chegar ao ponto ‘X,’ na real essência daquele produto influenciador em meio a tantos influenciadores, cada qual com suas técnicas e artimanhas. Algo que outras nações, sobretudo as do Hemisfério Norte, possuem mais facilidade para fazer… afinal, tivemos décadas de consumo de “enlatados”. Os conhecidos enlatados norte-americanos. Sim, as crianças de lá também consumiram os produtos da casa, mas consumiram dentro de normas. Orientações da cultura deles, muito diferente da nossa. Com seus acertos e também erros – o liberalismo teve seu alto preço. O que Hollywood produziu de bizarro nada mais foi que também reflexo da sociedade e principalmente dos bastidores da sociedade deles. Uma produção satanista, por exemplo, impacta de uma forma lá que é totalmente diferente da forma que impacta no Brasil, na Europa ou na África.

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Hoje, quem elogiou a expressão Televisão é a imagem da besta, certamente possui a internet em seu celular. Quem consegue viver sem internet? Da mesma forma pergunto: quem consegue viver sem armas para defesa? Muitos defendem a arma de fogo. Mas quem não tem arma de fogo, usará a velha arma branca. Ou qualquer objeto que tenha em mãos, vira arma. Uma pedra, seu automóvel… ou suas mãos se souber lutar. Bobagem debater o poder da comunicação e o uso de armas. O que nos falta é o raciocínio para saber como usar da forma mais nobre a comunicação, que é a principal das armas, aquela que pode nos levar ao uso ou não das demais… justamente essas demais que podem trazer consequências terríveis. O velho Chacrinha já dizia; “quem não se comunica, se trumbica”. Hoje, se trumbica quem não sabe como se comunicar. A passividade, a aceitação e a falta de senso crítico forma pessoas fáceis de se dominar. Continuamos, infelizmente, ainda nos degraus mais baixos da compreensão acerca dessa complexa rede de produções e influenciadores, agora digitais. Entramos na era digital… acompanhamos, temos a internet em mãos, assistimos os desenhos modernos, japoneses, debatemos as produções atuais, inclusive as nacionais… e até as tais teorias conspiratórias! Mas continuamos envoltos às sombras das velhas produções de Hollywood, Walt Disney, Hanna Barbera… e do conceito Televisão é a imagem da besta.… ou porque não tivemos a oportunidade de aprender a dissecar aquelas essências ou aprendemos mas queremos usar determinada ferramenta para interesses obscuros de poder, de doutrinação… que aí já envereda para outro tipo de debate.

A reflexão deste artigo fica para o trecho da letra de um MC: “Saí da favela mas ela não saiu de mim”, que corresponde; nossa vida social, precisamente a urbana, se assemelha aos episódios da Formiga Atômica, por mais que tenhamos “evoluído”. (Foto: aservicodorei.com)

GEORGE ANDRÉ SAVY

Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.

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