Faz tempo, mas muito tempo mesmo, que converso com gente que perambula pelas ruas; gente que nasceu e cresceu nas beiradas do mundo. Muitos deles vieram de margens distantes, à procura da atmosfera ilusória dos grandes centros urbanos, movidos pela expectativa de uma vida melhor e se desencontraram em periferias que estrangulam a dignidade.
Recordo-me de um marinheiro, que por aqui passou no início da década de 80, carregando somente uma garrafa com um barco dentro, feito por ele em período de cárcere. Abordou-me para solicitar um copo de água e foi desenrolando a carta de sua história, escrita no vai e vem das ondas do mar. Seguia a rota de sua cidade de origem, a pé ou de carona, na esperança de encontrar o filho que deixara menino no colo da mãe, a fim de pedir que os dois lhe concedessem o perdão pela ausência – diante do Céu já se dobrara. Aos dois, como lembrança de suas viagens, a garrafa desguarnecida de aguardente. Em seguida, prosseguiria em direção à torre abandonada do farol de um porto, para ali acender uma lamparina. Lá, de onde partira outrora, aguardaria o apito final, talvez muito próximo, pois a doença, que carregava, não tinha cura. Seu olhar era um misto de oceano, grades, melancolia, de aves oceânicas em migração. Chorei com ele.
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Há poucas semanas, um moço, de fisionomia distante, com um cabo de vassoura no ombro, em cuja ponta havia uma trouxinha, me pediu uns trocados. Perguntei-lhe sobre o seu destino. Com o queixo, apontou-me o horizonte. Em seguida, murmurou que buscava o túmulo do pai, para acender uma vela e enfeitá-lo com conchinhas brilhantes que recolhera nas praias pelas quais passara. Murmurou e se fez distância.
Juntei os dois, embora creia que nada possuam em comum, a não ser referências marítimas. Uma pequena chama para acender no anseio de cada um deles.
Prosseguir na luz e não se acovardar com a escuridão dos trajetos, eis o essencial. (foto acima: conexaog.org)
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE
Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de vulnerabilidade social.