Considera-se que a taxa de homicídios por 100 mil habitantes é o parâmetro usado pela comunidade internacional para estabelecer o índice de segurança de um país. No Brasil, a falta de uma Política Nacional de Segurança Pública, que seja séria, contribuiu para o registro de cerca de 60 mil mortes violentas por 100 mil habitantes em 2016. Número que por si só representa em alguns casos, ser superior aos números de mortes registradas em cenários de guerra, mundo afora. Enquanto a propaganda enganosa do poder público insiste em demonstrar de forma eufemística, situação de segurança que não condiz com a realidade do dia a dia do cidadão, continuaremos cada vez mais reféns do crime e da violência em geral em qualquer lugar. As cidades de pequeno e médio porte que antes tinham o mérito de serem seguras, hoje a realidade é outra e prova disso são os violentos crimes praticados por bandos fortemente armados, que não hesitam em efetuar disparos de fuzil a esmo, só pra intimidar o poder público, além de outras atrocidades praticadas contra a comunidade desses locais. A questão da insegurança no país é tão vergonhosa que gera situação única de um tipo de violência muito registrada nos grandes centros, mas que podem ocorrer em qualquer lugar e horário, que são os casos de balas perdidas, as quais sempre encontram ou acabam achando alguém na condição de vítima desse flagelo.Considerados os elementos de tempo e espaço, em alguns casos é mais provável que uma pessoa seja atingida por uma bala perdida do que ser contemplada num sorteio da Mega Sena. Vale lembrar que o termo bala perdida é uma nomenclatura de criação popular para identificar uma situação de violência causada por arma de fogo, mas não consta como tipo penal. O termo está mais para a tipicidade do crime de disparo de arma de fogo ou mesmo homicídio doloso ou culposo, conforme o caso, considerada a subjetividade do agente e circunstâncias na prática da conduta criminosa. A verdade é que sempre há alguém no caminho das balas perdidas…
A Organização das Nações Unidas – ONU, através do Centro Regional para a Paz, Desarmamento na América Latina e Caribe (Unlirec – sigla em inglês), publicou relatório em maio de 2016 (http://www.unlirec.org/Documents/Balas_Perdidas.pdf), apontando o Brasil como sendo o país com maior incidência de mortes causadas por balas perdidas na América Latina e no Caribe. Os casos desse tipo de ocorrência foram registrados através dos meios de comunicação existentes nessas regiões, até pela dificuldade de obtenção desses dados diretamente dos órgãos públicos de segurança. No registro da ocorrência de bala perdida, quando não se tem certeza do que realmente aconteceu, podem ser registradas diferentes versões para um mesmo tipo de acontecimento, gerando dados imprecisos quanto a real tipicidade do fato. Essa incerteza pode interferir para a clareza dos indicadores estatísticos criminais, sem falar na possibilidade ardilosa de maquiar dados, conforme interesses políticos. Segundo dados do relatório, ocorreram entre 2014 e 2015, cerca de 741 ocorrências envolvendo balas perdidas na América Latina e Caribe, sendo que desse total, 197 delas aconteceram no Brasil, resultando na morte de 98 pessoas e 115 feridas, vinculando as mais variadas situações.
Para alguns especialistas na área de segurança pública, o fenômeno da bala perdida ocorreria com mais intensidade no Brasil em razão do armamento inadequado utilizado pelas forças de segurança nas operações policiais, como os fuzis de alto poder de fogo. Esse tipo de armamento, que realmente possui alta capacidade de disparo atingindo longas distâncias, teria maior probabilidade de atingir qualquer pessoa, além do alvo pretendido, dada a sua potência de penetração. Realmente, parte do armamento empregado hoje pelas forças de segurança, tem grande poder de vulnerabilidade e precisa ter, porém essas armas somente se equiparam àquelas utilizadas pelos criminosos, que em alguns casos são até mais potentes que as utilizadas pela polícia. De forma que armar o policial com ferramenta insuficiente para o combate à criminalidade e a violência é no mínimo sentenciá-lo à morte, quando dum eventual enfrentamento. A solução é mais complexa e exige maior aprofundamento de análise das questões envolvendo o problema da criminalidade, que não somente a questão do armamento empregado pelos agentes de segurança.
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Quanto a motivação, ou seja, a razão do disparo dessas balas perdidas, segundo o relatório, 31% delas não se identificou nos registros policiais e nem na sua publicidade, qual seria o motivo do disparo de arma de fogo atingindo alguém. Já nos casos envolvendo conflitos entre gangues, grupos criminosos rivais, a porcentagem ficou em torno de 15% do total dos casos, enquanto situações envolvendo roubos ficou na casa dos 12%. Os casos envolvendo violência interpessoal, casos de brigas, discussões, etc., foi de 10% dos casos. Os famigerados disparos de armas de fogo para o alto, seja para intimidar, festejar, entre outras condutas inapropriadas, vindo atingir alguém, ficou em 9% dos casos. No caso de ações policiais combatendo o crime, as ocorrências de balas perdidas ficou em 19% do total dos casos. Analisando tais porcentagens, fica clara a constatação de que apesar do Brasil ser o país em que mais ocorrem casos envolvendo balas perdidas, esse fato também é registrado em todos os demais países da América Latina, inclusive o Caribe, formado por suas ilhas e mares insulares.
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Ainda segundo o relatório, no Brasil 30% dos 197 casos de bala perdida tem motivação não identificada. Também contribuem para esse quadro caótico, ocorrências envolvendo crime organizado, com 24% dos casos; violência entre grupos criminosos e casos de roubos, ambos com 16% do total de casos. Merece destaque os casos de intervenções policiais isoladas onde se registrou ocorrências de balas perdidas, que ficou em 7% dos casos, ou seja, nessas situações o relatório não especificou qual o tipo de ação policial que foi desenvolvida, gerando o disparo atingindo alguém. Nos casos de intervenção policial contra o crime organizado e roubos, a porcentagem de balas perdidas ficou em 19% do total. Confirma isso a intensidade com que ocorrem os enfrentamentos hoje entre forças de segurança e criminosos. No geral, o relatório indica uma média de casos de balas perdidasnos países analisados, quanto a intervenções legais isoladas, apontando uma média de 3% (no Brasil 7%) e nas intervenções combinadas com algum crime, média de 11% (no Brasil 26%). Diante desse quadro, quanto as intervenções policiais, o número de vítimas atingidas por bala perdida no Brasil realmente é maior que nos demais países analisados, chegando a um total de 37, contra 83 nos demais países, o que representa cerca de 44,5% do total de vítimas nessas situações. O relatório não menciona o que poderia influenciar tais números, como falta de treinamento, equipamentos, formação e preparação dos agentes de segurança, enfim, eventuais causas que uma vez identificadas, poderiam ser melhor analisadas, estudadas e aprimoradas, influenciando na qualidade do trabalho policial prestado à sociedade. No contexto, analisados e comparados os indicadores quanto a intervenção do estado, seja nos casos legais isolados, seja nos de combate ao crime, fica nítido a diferença negativa dos números da segurança pública no país. É preciso vontade política para buscar soluções eficazes e perenes para o problema da insegurança.
No aspecto jurídico legal, as situações envolvendo bala perdida, seja causando a morte ou ferimentos nas pessoas, são fatos graves e podem gerar responsabilidades nas mais variadas formas, segundo regramento criminal brasileiro. À título de exemplo, vale lembrar que somente no caso de disparo de arma de fogo ou mesmo o simples fato de acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, já tipifica crime previsto no Estatuto do Desarmamento, Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa. Nesse tipo penal especial não há necessidade de que o disparo venha a atingir de fato alguma pessoa, basta haver a deflagração da arma ou mesmo de uma simples munição, nas situações previstas no tipo penal, para tipificar o delito. A lei procurou dar ênfase a essa conduta criminal, prevendo incialmente no parágrafo único do artigo, que esse crime fosse inafiançável, um absurdo jurídico. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3112) foi proposta em 2004 e o artigo revogado por ser considerado inconstitucional. Nos casos onde ocorre efetiva morte, intencionalmente veladas, as penas podem chegar até décadas de reclusão, conforme o caso, desde que identificada e confirmada a autoria por conjunto probatório.
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Em recente noticiário policial, registrou-se a ocorrência de um crime de roubo, com pronta ação de policiais que não partiram para o enfrentamento com marginais, visto que no local havia grande fluxo de pessoas, inclusive crianças, resultando na fuga de um dos criminosos. Houve crítica por parte de algumas pessoas, que por não entender que a atitude dos policiais foi primeiro balizada na lei e principalmente na segurança do cidadão, discordaram da atitude correta dos policiais, o que não pode prosperar. O Estado não pode se igualar à selvageria do criminoso. A situação demonstrou o preparo e treinamento adequado daqueles profissionais de segurança pública e essa deve servir de exemplo para todos aqueles que enfrentam verdadeiras situações de guerra a cada turno de serviço. Pena que os criminosos não atendam esse regramento de segurança para a população, pois que não hesitam em efetuar disparos pra qualquer lado na prática do crime. De qualquer forma, melhorar as condições de trabalho dos agentes de segurança, através de adequado treinamento, condições salarias, equipamentos, viaturas, etc., possa redundar em queda nos índices de balas perdidas quando de intervenções legais, sejam isoladas ou no combate a algum tipo de crime. (foto acima: www.jornadadiaria.com).
JOSÉ ROBERTO FERRAZ
Ex-comandante da Guarda Municipal de Jundiaí; delegado aposentado da Polícia Civil; especialista e professor de Direito Ambiental.