Repensando o POLITICAMENTE CORRETO

politicamente

Estava tranquilo e bem humorado, resolvendo coisas profissionais e rearrumando arquivos, livros, documentos, quando recebo uma ligação de uma amiga, bem descolada e bem modernosa, que me convidava para uma reunião com fins sociais e de ajuda à uma determinada entidade da cidade. Seu convite me fez rever algumas posições antigas e, ainda vivas e mantidas em mim, que me puseram repensando no politicamente correto. Este pensamento me fez recorrer a outra crônica já escrita, da qual lanço mão de trechos, num autoplágio consensual.

É o caso daquelas articulações da língua portuguesa que não atendem à nenhuma regra, mas é moderna e vemos muito frequentemente em reuniões, discursos, encontros, enfim:  sempre surge um colega que nos cumprimenta em alto e bom som: “Boa noite a todos e a todas”. Ouve-se murmúrios e sons sendo articulados, em especial porque pensa-se em pessoas descoladas e atuantes, pessoas contextualizadas, ‘pessoas cabeça’ com expressões contemporâneas e desconfiguradas.

Com o avançar das conversas tem-se a impressão que parte do grupo tem um “código de expressão” engajado e forte, rebatedor de toda e qualquer expressão que não compusesse com a linguagem daquele segmento, o que foi silenciando, pouco a pouco, a fala dos presentes e concentrando a vocalização no pessoal do patrulhamento. Alguns vibram com o avançar da conversa/discurso, outros apenas flanam.

Fecho-me e coloco-me a observar os comportamentos, como um digno pesquisador de comportamentos humanos, mas confesso que tal ambiente e fala me acorrentam. O silêncio a que eu me imponho acaba por me incomodar, posso dizer que sinto algo muito próximo ao acovardamento e medo de exposição, mas o grande dilema é que não concordo com esse tipo de fala. Não sou hábil na linguagem “policamentecorretês” e não tenho traquejo para tanta sensatez diante do não-contextual.

Explico tal impropriedade minha: sou adepto de Goffmann e Luckmann e Berger e Adorno. Sou amante do contextual. Sou atento aos ensinamentos oriundos do “Estigma”, do “Comportamento em lugares públicos”, do “Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face”, bem como “A construção social da realidade” e a “Dialética do esclarecimento” escritos por cada um deles e isso sempre me direcionou, no contexto que estiver, no momento que estiver. Minha vida acadêmica foi, é e será pautada por estes ensinamentos e reflexões, que são claros, assertivos e elucidativos, cada um a sua maneira.

Desta forma, entendo que o politicamente correto não deva me oprimir, nem deva me patrulhar, pois estaria fazendo um papel castrador e limitador de minhas inserções sociais de maneira indevida. Penso: aprendi que, em um grupamento com 10 mulheres e um homem a concordância nominal se faz no masculino, sem arranhar regras sociais ou culturais ou contextuais. Caso eu tenha tido bons professores de Língua Portuguesa (e eu tive: Paulo Bevilaqua, Paulo Vieira, Beni Marchi, Jesabel Camargo, Ana Maria Costa) estariam eles errados? Ensinariam-me a mim e aos meus colegas inadequações linguísticas e gramaticais?

Fui fundo nessa reflexão, ainda que balançasse a cabeça, em alguns momentos, com se estivesse participando do diálogo, ao meu lado, que discutia um sei lá o que. Pensei em todas as coisas que já ouvi e que hoje soam contrárias aos bons costumes vigentes: no cabelo da mulata, que não negava; pensei na cabeleira do tal Zezé. Até me lembrei de meu amigo Zezé, que era careca(ops, desculpem-me: destituído de folículos capilares no alto de seu crânio). Pensei em Alá; na tão cantada Maria Sapatão; na tal história da maçã que Adão comeu de manhã…

Saí das marchinhas e fui para as ainda folclóricas músicas infantis e me peguei eufórico lembrando que, em casa, tínhamos dois gatos mas cantávamos a mais não poder o infantil “Atirei o pau no gato”, mesmo depois me agregando à Sociedade Protetora dos Animais, sem nunca haver lançado nada contra gato algum, pois apesar de cantar a musiquinha, tinha pais que me educaram para o exercício da cidadania e da convivência sadia.

Fiquei aflito ao meu lembrar do “soldado com cabeça de papel”, da tal Lelê do “Samba Lelê”, que precisava de umas boas palmadas… Na hora pensei no ECA e na possibilidade de retirada dela de seus pais, molestadores de infantes indefesos. Em minha atual formação, como professor de um curso de Psicologia, vi-me forçado a pensar no “Boi da cara preta que vem pegar menino que tem medo de careta”. Imaginei o pecado cometido ao dizer que o boi tem cara preta (preconceituosamente…. affff).

Passei a visitar meu imaginário, ainda, e localizei a coitada da criança que é obrigada a dormir, senão a Cuca vem pegá-la….e por aí vamos recordando (e policiando) nossas recordações politicamente incorretas. Lembrei-me, até, da melosa Ciranda, cirandinha, cujo anel era de vidro e se quebrou, levando junto a esperança do amor, que era pouco e se acabou… Doce sonho, feliz infância e descontextualizada opressão. E do Saci Pererê, negro, sem uma perna, que passou a ser uma figura ostensivamente pecaminosa nesse novo olhar.

Em meus retornos ao ambiente e na tentativa de compreender o que estava fazendo ali, passei a pensar naquilo que via, no que sabia e estava por vir: cantar estas marchinhas não pode, porque são ofensivas à “mulata” por remeter a mula ou porque expressa algo contra uma raça, mas cheirar cocaína no bloco pode? Beber até entrar em coma alcoólico pode? Sair de casa para uma reunião de negócios que termina no happy hour no motel, com a secretária, pode?

Será que discutir peças folclóricas não nos obrigam a pensar na época de suas criações e propor aos atuais interlocutores que informem, ensinem, expliquem aos jovens contemporâneos quem foi o criador daquela música, qual era aquele contexto, com que finalidade se usou esta ou aquela expressão. Isso não nos parece mais lógico e educativo do que limitar a dizer: politicamente incorreta!

Ao rotularmos algo, sem a devida explicação, estamos oprimindo, negando o direito de saber, pensem comigo…coitadas de nossas crianças, que ao ouvirem a cantiga: “dorme nenê, que a cuca vem pegar, o papai foi a roça e a mamãe ao cafezá” irão se assustar e se perguntar: que porra de cuca é essa? Quem é esse tal de papai que nunca está em casa, e que diabo é essa roça? Esta linguagem, no século XXI, não faz sentido a não ser o folclórico. É a cantiga de um tempo que um dia já vivemos. Já não o temos mais.

Mas explicar aquele tempo demanda muito: é preciso saber diferenciar o hoje do ontem e do amanhã. E isso é tarefa difícil para os imediatistas de plantão. Quantos de nós não temos tempo para educar nossos filhos e os entregamos a serviços de terceiros, na esperança de uma boa educação? Esses são os nossos tempos, chamados de “hard times” pelos filósofos contemporâneos, com toda razão.

E, logicamente, você deve estar se perguntando: como seguiu a reunião? Seguiu chata, porque me cansei do silêncio e comecei a dizer para quem estava ali, qual era minha opinião e como eu me portava diante de situações inusitadas como aquelas, porque aquilo era de uma esquisitice a toda prova. De imediato passei a ser o pato listrado numa lagoa de patos branquíssimos.

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Mas, no âmbito do politicamente correto, ainda ouviria muitas provocações que me possibilitaram retornar aos questionamentos e outras que me conduziram às maiores reflexões e silêncios, para não vibrar na mesma sintonia. Os politicamente corretos são truculentos. Ameaçadores. Falam em nome de seu clã. Fizeram-me lembrar de grandes e vestutas agremiações seculares, detentoras de saber e poder (mais poder do que saber, convenhamos), as quais não perderei tempo nomeando, justamente por estarem falidas e descontextualizadas.

Novamente, eu comigo, dirigindo-me para casa, peguei-me refletindo: falar, falaremos, mas o ideal é que estivessemos impregnados de saber, para não falarmos mas agirmos politicamente adequados. Não sei se é correto. Mas é aquilo que contextualmente temos para nossa contemporaneidade. Minha impertinência me traz insônias que favorecem meus princípios: não se conhece nem se transforma o hoje, sem profundo conhecimento do passado e sem extrema cautela com os avanços para o futuro.

Desculpem-me pela apropriação e adequações de uma crônica já lida por vocês, mas a situação precisa ser melhor entendida e vivida, senão representaremos e seremos um grupo de falseadores da situação e tenderemos a fingir diante do óbvio, somente para sermos politicamente corretos. Mesmo não sendo.(Foto: Rodolfo Clix/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do Lepespe, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da Unesp. Mestre e Doutor pela Unicamp, livre docente em Psicologia do Esporte, pela Unesp, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology. Diretor técnico da Clínica de Psicologia da Faculdade de Psicologia Anhanguera, onde leciona na graduação.

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