Quando aceitei o desafio de escrever sobre deficiências, principalmente a visual, aquela que eu vivo, passei a pensar no assunto. Logo me lembrei de algo que é praticamente uma característica icônica da cegueira. Há muitos anos, eu e minha esposa Claudia, recebíamos em casa um casal de amigos. Sérgio e Manoela. Cleu, a filha do casal, estava naquela fase que as crianças desenham os adultos e depois oferecem o presente/homenagem para o retratado. Cleu desenhou o tio Zé (no caso eu) com uma bengala. Ela nunca tinha me visto usando bengala que, para mim, representa a liberdade.
A passagem acima citada é alusão mais clara que conheço ao binômio cego/bengala. A pequena sabia que eu era cego, portanto, representou-me usando uma bengala. Cleu tinha razão. A bengala é mesmo ligada a nós cegos de forma icônica. Particularmente, não me separo da minha, esteja onde e com quem estiver. É minha ferramenta de locomoção. Ela entrou em minha vida de forma muito diferente dos cegos mais jovens. Tinha 17 anos. Fazia o colegial na escola Ana Paes. Pura adolescência. Sonhos, hormônios e ideias explodindo. Desejos. Namoradas? Como bom adolescente era inseguro. Para complicar as coisas, como chegar numa menina se você não pode ir até ela por seus próprios recursos? Dependia de minha mãe para ir e voltar da escola e dos amigos para deslocar-me nela.
Precisava andar sozinho. Precisava de uma bengala. Na época, não havia curso de Orientação e mobilidade em Jundiaí. É assim que se chama o curso para andar de bengala. Procurei a fundação Dorina Nowil, em São Paulo. Passei por um longo processo de avaliação. Entrevistas com psicólogo, assistente Social, pedagogo, sei lá mais o que. Tivemos até uma visita da assistente social em minha casa. Eu teria que ficar em São Paulo enquanto fizesse o curso. Ao final, a equipe técnica de lá respondeu que seria melhor eu aguardar o fim do colegial e completar 18 anos para fazer o curso. Não. Não. Isso para mim seria insuportável. Precisava ser livre.
A situação era desesperadora. Queria festas, amigos e meninas. Não podia esperar. E em algumas ocasiões na vida são necessárias pequena dose de loucura.
Meu amigo Jorge Murari (hoje infelizmente já falecido) também era cego. Tinha noções do uso de bengala. Havia feito o curso na fundação Dorina Nowil. Combinei com ele. Ele me mostrou como usar a bengala. Como caminhar com ela de forma que monitorasse minha frente. Uma aula. Pronto, já estava bom para ir há rua. Saímos ambos de madrugada da casa dele na rua Prudente de Moraes. Cada um com sua bengala. Subimos a rua Siqueira até a Marechal. E descemos pela São Bento. Fim do curso prático. A partir de então, Fui fazendo caminhadas solitárias de bengala tendo como base a casa dele e ganhando cada vez mais liberdade.
Caminhadas agora durante o dia. Dava uma volta no quarteirão. Ia até outra quadra… Assim fui aumentando meu percurso e me familiarizando com as ruas de Jundiaí. Nunca vou me esquecer o dia que virei a esquina para entra na calada da Rua Barão de Jundiaí. Eu estava lá. Na rua do centro. Só eu. Eu e as pessoas. Eu e o mundo. Na primeira vez que passei diante da antiga Paulicéia não resisti. Tive que entrar para tomar um café. Estava ali. Estava ali sozinho num dos símbolos de minha cidade. A praça da Igreja, a rua do quartel, a loja Leopardi. Eu podia ir, ficar, estar e partir quando e se quisesse.
LEIA MAIS UM ARTIGO DE JOSÉ AUGUSTO DE OLIVEIRA
Hoje cerca de 40 anos depois, me desloco praticamente só de carro. Em nosso próprio veículo dirigido por Claudia ou de Uber, mas a bengala está sempre em meu bolso. Uso para pequenas distâncias e para me lembrar do valor que tem a liberdade. O direito de Ir e vir. A tão falada autonomia. Há alguns anos procurei um técnico para ver se pelo fato de ter aprendido a usar a bengala de forma tão pouco convencional, eu não havia adquirido hábitos e modos incorretos de usá-la. O profissional disse que não. Fiquei contente. Pelo fato de usar a bengala pude estudar fora da cidade e participar de congressos até mesmo fora do Estado. Sem contar as viagens de lazer. Liberdade! Essas histórias ficam para outra vez.(Foto: Mart Production/Pexels)

JOSÉ AUGUSTO DE OLIVEIRA
Formado em Psicologia na Universidade São Francisco (USF) e Psicanálise pelo IPCAMP(Instituto de Psicanálise de Campinas). Atua no AMI (Ambulatório de Moléstias Infecciosas da Prefeitura de Jundiaí) e em consultório particular. WhattsApp: (11) 982190402.
VEJA TAMBÉM
PUBLICIDADE LEGAL É NO JUNDIAÍ AGORA
ACESSE O FACEBOOK DO JUNDIAÍ AGORA: NOTÍCIAS, DIVERSÃO E PROMOÇÕES