MULHER TRANS tem alvo nas costas. Até quando?

mulher trans

Embora quisesse ter apenas publicações celebrando artistas locais e cultura preciso também, tristemente, trazer à tona a realidade ao meu redor e ela é horrenda, injusta, nojenta e praticamente impossível de digerir. Recentemente recebi a notícia que mais uma mulher trans foi morta odiosamente. Sempre que este tipo de história aparece aos olhos de leigos, a relativização começa. “Mas o que ela estava fazendo na noite? Qual roupa ela estava usando? Não foi ela quem buscou? Ela não estava drogada?”. Sempre procuram formas de culpar a vítima e minimizar o caso, ainda mais se ela não for uma pessoa cisgênero, branca ou rica, e como um ato desesperado de tentar colocar o seu olhar, querido leitor, na realidade das vítimas no Brasil, irei descrever entre fatos e comentários o que ocorreu com Daniele Miranda Alves, uma mulher trans que tinha apenas 21 anos quando entrou para estatísticas nacionais de longevidade de corpos LGBTQIA+.

Era uma noite quente de sábado e Daniele, no auge de sua juventude, saiu com uma amiga, Rafhaelly. Foram para um baile na Zona Sul de São Paulo. Elas passaram a noite aproveitando a festa como qualquer pessoa desta idade. Ao amanhecer teve início um pesadelo trágico e presente na realidade de qualquer mulher trans: através de imagens de câmeras de segurança vemos Daniele sendo abordada por um homem. É uma clássica cena de flerte entre jovens. Depois, às 6h41, aparece um carro. Ela entra no veículo. Por razão desconhecida vemos que, dois minutos depois, ela deixa o carro com uma energia completamente diferente. Ela e a amiga estão revoltadas, andando pra lá e pra cá, apontando na direção de homens que se encontram próximos ao carro, um Volkswagen vermelho. Elas estão em público. Mas, por motivos que todos imaginam, estão praticamente sozinhas sozinhas na tentativa de fazer alguma denúncia verbal. Apenas uma outra mulher tenta entrar na discussão. Ela empurra Dani para os braços de um homem, talvez na tentativa de fazê-la resolver algo com ele. Depois vemos Daniele dar um tapa em um rapaz e logo após isto um homem de moletom vermelho avança, levando Rafhaelly a agredi-lo fisicamente.

A partir desse momento tudo piora: todos que estavam por perto se afastam. Rafhaelly é espancada pelo homem de moletom e após Daniele sair do carro o mesmo vai em direção a ela e a agride também. Após a entrada de alguns homens, o carro sai de marcha-à-ré rapidamente, quase atropelando algumas pessoas. Embora o carro tenha saído de cena, as duas continuam ali sendo espancadas pela mesma pessoa, o mesmo monstro. O mais repugnante é saber que, como consta no vídeo, o motorista do carro antes de qualquer discussão começar estava beijando e abraçando Daniele…

É natural pensar sobre o que exatamente causou essa discussão mas espero que você não tenha feito o que mencionei acima. Espero que não tenha relativizado, buscado razões possíveis para um ato sádico assim. O que posso adiantar aos leitores que nunca vivenciaram de perto a realidade de uma mulher trans é que essa cena não é rara. Infelizmente o sistema transfóbico engole e ceifa a comunidade trans e travesti por meio de assédios, agressões sexuais e morais regados a abuso constante das formas mais grotescas e esse foi mais um caso que colabora para que o Brasil seja o país que mais mata e comete crimes de ódio em direção a população LGBTQIA+ no mundo.

Como se não bastasse acabar ali o momento gostoso de descontração de Dani e Rafha, a violência não parou. Diria que naquela filmagem só víamos o início. Depois de receberem socos à luz do dia sem ninguém para defendê-las, as duas voltam para casa a pé, onde são surpreendidas na avenida, 800 metros à frente, com tiros. Antes do crime acontecer vemos Rafhaelly olhando para trás assustada, virando o corpo e percebendo que o mesmo carro, vinculado aos agressores, estava perseguindo-as e era tarde pois já estavam se aproximando. Ela empurra a amiga na tentativa de ajudá-la a fugir. Em uma fração de segundos vemos cada uma correr para um lado enquanto tiros vão em direção a ambas. Rafhaelly percebe que as duas se desencontraram e também vê que a amiga foi atingida, voltando então ao encontro dela. As duas se veem em um estacionamento e também com câmeras de segurança vemos Daniele ainda conseguir andar com a adrenalina correndo em suas veias. Mas não existe adrenalina que poderá salvá-la. Daniele cai morta. O carro vermelho, o moletom vermelho abre espaço agora para o sangue escorrendo pelas ruas e sujando as mãos de um criminoso. Mais uma mulher trans assassinada. Mais uma vida jovem interrompida por ódio sistemático e brutal.

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Assassinatos trágicos acontecem diariamente com todo tipo de pessoa mas venho aqui denunciar crimes de ódio contra a comunidade LGBTQIA+, Estes casos tendem a ser absurdamente piores, ainda mais com mulheres trans e travestis. Nesses casos, o ciclo de agressão quase nunca acaba com um soco ou xingamento: ele acaba sempre em facadas, tiros, enforcamentos e vemos isso por meio de dados. É comprovado por pesquisas do Antra, Grupo Gay da Bahia e demais ONGs que a cada 34 horas, uma pessoa LGBTQIA+ é morta no Brasil simplesmente por ser o que é: um corpo LGBTQIA+. Estes são os números que são comprovados pela polícia como crime de ódio, imagine quantos outros não tem comprovação e ainda assim ocorrem.

Por isso, na próxima vez que ouvir alguém dizer que as pautas da comunidade são puro mi-mi-mi, vitimismo ou lacração lembre-se que pessoas LGBTQIA+ sofrem um perigo sufocante a partir do momento que o mundo sabe quem são estas pessoas. Isto acontece independente da idade, lugar ou situação. Daniele foi mais uma que assim como tantas vítimas era jovem, tinha uma família querida, amigos que a amavam. Mas nada disso importou quando seu destino cruzou com alguém que a viu como mero objeto não merecedor de afeto. É revoltante mas a realidade é uma só: saímos de casa todos os dias com um alvo vermelho-sangue pintado nas nossas costas, pedindo aos céus que possamos simplesmente chegar bem no nosso destino, seja ele qual for.(Foto: Youtube/edição: Anna Clara Bueno)

ANNA CLARA BUENO

De nome artístico Anubis Blackwood, é drag queen, artista performática e visual, professora de inglês, palestrante e produtora cultural. É membro do coletivo Tô de Drag, o primeiro de arte drag de Jundiaí e região. Colabora com o ‘Grafia Drag’, da UFRGS. Produz o festival Drag Vibes em colaboração com o coletivo, para democratizar a arte drag, mostrar sua versatilidade e levá-la a espaços e públicos novos por meio de performances plurais e muito diálogo.

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