COISAS simples, quase invisíveis

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Há coisas que não cabem em retratos nem em definições: a amizade verdadeira, a dor da perda, a força silenciosa da espiritualidade e, acima de tudo, a certeza — que cresce como uma semente dentro do peito — de que é possível viver de outra maneira. Mais leve, mais presente, mais profunda. O tempo, mestre impiedoso e generoso, se encarrega de mostrar que muito do que julgávamos indispensável era, na verdade, peso morto. E que outras coisas — simples, quase invisíveis — mantêm a alma respirando. São estas coisas que, mesmo quando tudo parece perdido, nos oferecem um novo chão.

Em um mundo saturado de likes e conexões instantâneas, a amizade real é um milagre que passa despercebido. Ela não tem pressa, não exige performance, não cobra explicações. Apenas está. É alguém que caminha ao nosso lado sem nos empurrar nem nos puxar — apenas acompanha. A amizade verdadeira é paciente com o silêncio do outro. É aquela que permanece mesmo quando as palavras cessam, mesmo quando o outro se fecha em dor ou incerteza. Ela não quer resolver. Ela quer estar junto.

O amigo não é um espelho nem um juiz. É um porto. É quem testemunha nossas quedas e continua vendo valor em nós. Há amizades que atravessam décadas, outras que surgem em um instante e parecem ter existido desde sempre. A diferença está na entrega, não no tempo. Nos momentos de perda, são os amigos que aparecem sem convite e sem hora. Às vezes trazendo uma sopa, outras vezes apenas um olhar que diz: “estou aqui”. É que sustenta quando o resto desmorona.

Perder é inevitável. É uma das poucas certezas da vida. Perdemos pessoas, lugares, fases, versões de nós mesmos. E, em cada perda, há um tipo de morte — mas também um chamado. A dor da perda nunca vem sozinha. Ela arranca, mas também revela. Mostra o que era essencial e o que era distração. Tira o véu do cotidiano e nos obriga a encarar aquilo que realmente importa. Perdemos, e junto da perda, vem o espanto: “como eu estava vivendo antes disso?”. Talvez seja por isso que os lutos sejam rituais tão necessários. Não apenas para honrar o que se foi, mas para nos recolocar diante da vida com mais verdade. A perda é uma ferida por onde, paradoxalmente, entra luz.

E então, começamos a escutar o que antes ignorávamos. O canto de um pássaro, o riso de uma criança, a sensação do sol na pele. Pequenas alegrias que estavam ali o tempo todo, mas que só agora fazem sentido. Não se trata de religião, mas de espiritualidade — essa escuta interna que nos conecta a algo maior, algo que nos transcende. A espiritualidade começa quando nos damos conta de que a realidade visível não é tudo. Que há algo mais — e esse “algo” talvez seja exatamente o que falta para que possamos viver de modo inteiro.

Nos instantes de dor ou desorientação, é essa espiritualidade que sussurra: “não estás só”. Ela não é uma fuga, mas uma presença. Um espaço interno onde descansamos, refletimos e reorganizamos sentidos. Uma ponte entre a finitude e eterno. Muitas vezes, é apenas após uma perda ou uma ruptura que nos abrimos à espiritualidade. Quando o chão desaparece, descobrimos que ainda há céu. Que ainda há oração, silêncio, contemplação. Que ainda há algo sagrado na vida, mesmo que não saibamos nomear.

E então, pela primeira vez em muito tempo, respiramos sem culpa. Confiamos sem provas. Acreditamos não porque vimos, mas porque sentimos. E isso basta. Tudo isso nos conduz a uma certeza silenciosa: há outra maneira de viver. Não uma utopia distante, mas um jeito mais simples, mais honesto, mais humano de habitar o mundo.

Essa nova forma de viver não exige romper com tudo, mas priorizar o que tem alma. É uma vida com menos ruído e mais escuta. Com menos pressa e mais presença. É dizer “não” sem culpa, “sim” com o corpo inteiro. É dormir em paz não porque tudo está resolvido, mas porque a alma está alinhada com o que importa.

Vivemos cercados de urgências falsas. A espiritualidade, a amizade e a consciência da perda nos ensinam a desacelerar, a distinguir o essencial do supérfluo, o eterno do efêmero. E, nesse movimento, surge uma possibilidade real de mudança: mudar a forma como sentimos, como olhamos, como reagimos.

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Outra forma de viver começa quando desistimos de vencer o mundo e escolhemos apenas ser. Ser com o outro. Ser com Deus. Ser com a dor. Ser com a beleza. É o Invisível que sustenta. No fim, o que sustenta a vida são coisas que não podem ser fotografadas.

A amizade que nos salva em silêncio. A perda que nos ensina sem palavras. A espiritualidade que nos reergue sem provas. A certeza de que há — sim — outra forma de viver, mais profunda, mais inteira, mais livre. Talvez seja isso que chamamos de sabedoria: não saber mais, mas precisar de menos. E escolher, dia após dia, aquilo que tem alma.(Foto:  Eugene Golovesov/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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