TRÔPEGO caminhar dos bêbados(ou ‘a dança sinuosa dos vampiros’)

trôpego

Muitas coisas não fazem sentido. Parece-me que o Mundo anda num descompasso que imita o trôpego caminhar dos bêbados, apesar deste andar ser visto como modelo da teoria do caos. Em nosso caso, na atualidade, a falta de sentido se prende a discursos desparelhados de ações. Ações sem fundamentos. Numa dança sinuosa de vampiros, à espreita de sangue novo; seja sangue no sentido estrito da palavra, seja sangue no sentido de força, de formato, de iniciativa.

Computo o cansaço mental a que nos submetemos para sobreviver esta primeira etapa da pandemia um exercício de muito sacrifício e de resignação; desconheço alguém que tenha passado impune e que esteja dentro de uma normatividade sem questionar ou queixar dos momentos difíceis e da solidão que habitou nossa morada íntima.

Ainda que leia (e veja fotos) sobre felicidades sem fim, sobre festas ou feitos mirabolantes, sobre conversas fantásticas, sou levado a, conscientemente, me indagar de que Mundo Fantasioso saíram alguns seres. Sim, porque a situação está crítica em todos os sentidos e a positividade não é a negação do ruim, mas o olhar adequado aos fenômenos que nos cercam. Daí a achar que tudo está bom, é outra conversa.

Ou estamos nos enganando, ou estamos tentando enganar a alguém, ou queremos passar uma imagem inadequada e incoerente ou tudo junto e misturado. Ao ler o pronunciamento do Papa Francisco, que diz: “em momentos de dúvidas eu corro aos braços do Pai”, fico imaginando que estes seres fantásticos da terrinha são mais espiritualizados que o Papa. Só que não. Podem quer ser, mas quilômetros de lucidez separam o Santo Homem de qualquer um de nós.

De onde trago esta reflexão, para minha crônica? Esta semana tive uns problemas de saúde e me perdi um pouco. Queixei-me aqui e ali, procurei ajuda especializada, refiz exames e o incômodo ficou por conta da espera de resultados. Por outro lado, soube de duas grandes cidades próximas que vacinaram todos seus professores de Educação Física, fisioterapeutas e psicólogos, enquanto por aqui entraremos, ainda na vacinação dos idosos de 90 anos ou mais.

Conversando com amigos, verifiquei que minhas queixas estão enquadradas dentro de um padrão de normalidade, diante dos sustos e das propostas existentes para o momento;não foram nem excessivas nem superficiais, devido aos seus fundamentos. Porém, comentando com um conhecido, desses totalmente zen, fui advertido, tendo que ouvir que eu não sabia dirigir meus olhares para o lado bom da vida. Optei por não polemizar: calei-me e, quase pedi desculpas, mas me afastei do Ser Fantástico.

Algumas pessoas nascem para ser fantasiosas e temos que permitir este direito a elas. Ao menos não nos aborrecem e possibilitam que percebamos como centrar nossas ideias. A realidade é concreta, pesada, difícil e imediata. Vivê-la com suavidade e doçura é uma opção. Vivê-la como se estivéssemos numa festa sem compromisso e sem roteiro é insanidade. Os enfrentamentos são aulas de crescimento, sim. E devemos vivê-los com profundidade e firmeza para sofrer de uma única vez e aprender a lição, já na primeira aula; esta é a ciência da Vida.

Fazer de tudo uma valsa é bailar ao som de qualquer música, inclusive da marcha fúnebre e isto não me parece um bom sinal. Enfim, cada um busca dar a cor que preferir a seus recantos e encantos, tentando harmonizar sua paleta de cores, em seu cenário, sem apelar para a insanidade e a negação do concreto: fato a se aprender e a se ensinar, até o último instante.

Sendo assim, o que fazer? O que dizer? Como conviver com tais sonhadores? Sem perder noção do equilíbrio entre os quatro domínios da natureza humana, há que se ter compreensão e sabedoria para dosar a intensidade e a tenacidade de nossas vontades, de modo a não extrapolarmos em nossa euforia que manifesta uma falsa alegria e bem estar. Permitir que nossas emoções fluam sem censura e senti-las com exatidão, favorece a uma vida plena de alegrias e positividade.

Atuar com firmeza e segurança, diante do inevitável e do inesperado, demonstrando maturidade, agindo com adequação e realizando propostas edificantes, culminam por nos estabelecer parâmetros de uma vida saudável e possibilita-nos compartilhar com nossos semelhantes daquilo que temos, somos e cremos. Isso coroa nossa existência, tão simples e tão etérea, junto aos nossos queridos mais queridos.

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Espiritualmente, a entrega é algo interno, sem cobrança e sem pagamento. A espontaneidade deve ser a premissa daquele que se doa e vê no outro o seu irmão, sem messianismo, mas numa percepção contínua e crescente de quem está imbuído da ajuda ao próximo e do fortalecimento dos laços fraternos, como uma forma de vida. Entendo isso como equilíbrio humano e sei que é possível abraçar este perfil como algo a se perpetuar, ainda que as incertezas surjam no caminhar.

A riqueza está em desconstruir cada incerteza e edificar cada verdade e carinho recebido ou distribuído, sem saber a quem dirigimos cada boa ação. Difícil arte de amar a todos. Fácil é falar em empatia sem aplicar nenhum gesto de proteção a ninguém, nem a si mesmo. Amar remove-me de dentro de mim para deixar espaço ao outro.(Foto: Antoni Perez/Youtube)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology. Aluno da FATI.

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