Semanas atrás falei sobre o Danúbio e outros rios, suas cores e o que transmitem por onde passam… agora torno o assunto, focando Jundiaí. A velha “terra da uva” nasceu e foi batizada literalmente pelas águas. Águas de um extenso e piscoso rio. Dos chamados bagres. Primeiro as águas piscosas. Em segundo lugar, as frutas, as imensas plantações de norte a sul, leste a oeste. E por fim, em terceiro lugar de importância, a ferrovia. E Jundiaí cresceu em torno destes três pilares. Suas águas, vindas de serras do entorno, as frutas, cultivadas por tantas e tantas famílias, e os trilhos, que trouxeram muito mais famílias, agora para uma Jundiaí agrícola e industrial.
Apesar da área agrícola ter perdido espaço nas últimas décadas, o nome “terra da uva” ainda consegue se manter, graças ao projeto “Circuito das Frutas” e algumas famílias que mantém a tradição neste ramo. Não se vê o mesmo quando o assunto é ferrovia e mais ainda rios. O Museu Ferroviário não tem a projeção que merece. O que mais teve projeção nos últimos anos foi o que a cidade perdeu: a estaçãozinha central e uma cabine, ambas em incêndios criminosos. E os rios? Ah, os rios e córregos desta terra… quando são lembrados? Nas ocasiões de acidentes, quando motoristas mergulham seus veículos em suas águas? Quando chove demasiadamente, transbordam e as águas inundam ruas e residências?
Nossos rios já foram muito festejados no passado. Pelas pescarias que proporcionavam e terras cultiváveis que irrigaram. Sim, tínhamos mais rios, córregos, regatos… hoje quantos são? Ou, uma melhor pergunta, quantos rios em terras jundiaienses nossa população conhece? Ah, muitos se lembrarão que em tal lugar passa um rio assim, de tal jeito… mas não se sabe de onde vem, para onde vai e muito menos o nome. É isso mesmo! Dez anos atrás fiz uma pequena pesquisa perguntando aos moradores quais os rios que conhecem. A maior parte citou apenas o Rio Jundiaí, alguns se lembraram do nome Guapeva. E os demais?
O Córrego do Mato, um dos poucos que tem uma plaquinha num determinado trecho, é conhecido popularmente como “o rio da nove”. O Córrego Walkyria só se tornou conhecido (e muitos souberam da existência dele) depois que foi aberta a Avenida Jacyro Martinasso para dar acesso ao novo viaduto sobre a Rodovia Anhanguera. E o Rio Jundiaí-Mirim, aquele que abastece a represa? E o Rio Atibaia? O Capivari, que nasce em nossas terras? Todo mundo conhece a represa, principalmente depois que foi criado o Parque da Cidade. Mas e o rio? Quem sabe de onde ele vem, por quais bairros passa? E por onde passa, qual a situação ambiental? Ele está bem protegido? Ou ameaçado por desmatamentos, erosões, assoreamento…?
Jundiaí traz histórias boas e tristes de seus rios e córregos. Após décadas e décadas de despejo de esgoto em tempos que não se falava em saneamento e principalmente educação ambiental, nos anos 80 os gestores deram início ao projeto de despoluição do Rio Jundiaí. E foram anos de desafio, porque rios atravessam municípios, então os projetos precisam ser regionais, envolver as cidades por onde os rios passam. Portanto, já são 40 anos de atenção para com o maior rio da cidade, que hoje é muito bem classificado. Mas ainda falta mais. Falta o que nos últimos anos não se viu na região, a despoluição dos córregos. Principalmente aqueles que fazem divisa, como o Córrego do Tanque Velho, entre Jundiaí e Várzea Paulista. De um lado, Agapeama. Do outro, Jardim Buriti. Resultado, nem um lado nem outro apresenta um projeto conjunto para acabar com o despejo de efluentes neste córrego, que deságua no Rio Jundiaí.
Mesmo após o Brasil elaborar sua legislação ambiental e o assunto ganhar imenso espaço na mídia, em revistas, jornais e ser debatido e estudado nas escolas, ainda existe certo “preconceito” em relação a ele. Refletindo sobre o início deste texto, inevitavelmente ele nos remete aos tempos agrícolas, quando o homem estava mais em contato com a terra, a água, o setor primário da economia. Principalmente os rios. Quem olha para um rio e imagina que tipos de vidas ali poderiam abundar? Ora, peixe não falta no mercado quando se quer comprar. E ninguém também quer saber a origem, se são de rios ou mares. Tal como nas circunstâncias negativas, acidentes ou enchentes, ninguém se preocupará com a situação dos rios enquanto não houver falta de peixe no mercado. Os rios só são lembrados quando algo ruim ocorre. Quando a poluição, o lixo começa a incomodar a vizinhança.
Voltemos ao Rio Jundiaí. Que nasce lá na Serra da Cantareira em Mairiporã, atravessa áreas rurais de Atibaia, Jarinu, áreas rurais e urbanas de Campo Limpo Paulista, Várzea Paulista, Jundiaí, Itupeva, Indaiatuba e Salto. Como ele está? Outro rio do mesmo porte do nosso é também de uma cidade que traz histórico semelhante, Sorocaba, cidade que teve sua grande fase agrícola e mergulhou na industrial. Rio Jundiaí e Rio Sorocaba, porte semelhante e igualmente atravessa as áreas urbanas das cidade, com vias marginais, exatamente como em Jundiaí. A diferença maior é que em Sorocaba os gestores optaram por despoluir o rio, mas mantendo as margens com vegetação, ao contrário do que fizeram em Jundiaí, que concretarem boa parte das margens. Alguns córregos também passaram pelo mesmo processo. E falando neste tipo de intervenção, vamos arrematar lembrando quantos e quantos tivemos ou temos e estão “invisíveis”. No ano passado, após rever um mapa antigo que possuo da cidade, inventei de comentar com um amigo que também analisa os aspectos geográficos, sobre um córrego que atravessa a Rua do Retiro, mas ninguém vê. Por que ninguém vê? Foi canalizado e totalmente fechado. Passa por baixo das ruas, residências, prédios, praças, até desaguar no Rio Jundiaí. Este foi o destino de muitos córregos da cidade, por isso sumiram dos mapas. E com o sumiço dos mapas e do espaço físico da cidade, vai sumindo também a fauna, especialmente as aves. Quem já viu a resistente garça que aparecia no Córrego do Mato em busca de alimento, quase que diariamente? Até irônico o nome “Córrego do Mato”, hoje na avenida mais urbanizada da cidade, cercada de prédios e com trânsito intenso.
São fatos, histórias que dariam um grande livro, como já tivemos sobre nossos ferroviários. Entre parreirais e tantas outras plantações de Jundiaí e região, muitos trabalhadores se utilizaram de nossos rios e córregos. Para o cultivo e a pesca. Também apreciaram uma fauna que hoje poucos jundiaienses veem. Onde estaria a garça do “rio da nove”, o Córrego do Mato? Não foi mais vista. Um dia também não veremos mais as conhecidas capivaras do que restou de mata próximo ao Córrego Walkyria. E por fim, muitas aves também desaparecerão, migrarão para outras áreas conforme as cidades crescem sem planejamento. Nada contra o progresso, o crescimento, desde que planejados. Mas sabemos que planejamento, critério ambiental, esbarra em interesses financeiros.
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Falamos muito na serra, nas matas. E acabamos muitas vezes deixando os rios para escanteio, sendo que eles têm extrema importância para o equilíbrio ambiental. A bandeira de Jundiaí tem exatamente as cores do ambiente preservado; o verde das matas que outrora eram chamadas de “Sertão de Jundiahy” e hoje correspondem ao Japi, e o azul correspondente ao grande rio que deu origem ao povoado e o nome. Cores ignoradas, inclusive por gestões passadas, que trocaram a cor da cidade pelo amarelo (como se vê no transporte de Jundiaí desde 2004).
É da água doce que nossa vida depende. Das águas foram possíveis as plantações que impulsionaram a terra da uva. Depois terra ferroviária, terra industrial… enfim, “terra da uva e do trabalho” como durante um tempo se viu grafado nos ônibus da cidade, antes de perderam suas identidades visuais e de orientação aos passageiros. As raízes precisam de água. E uma cidade que começa a perder suas raízes não consegue manter em pé sua história. Tal como o córrego vizinho ao Córrego Walkyria na Rua do Retiro… dezenas de outros ficaram abaixo do concreto ou secaram com o aterramento das nascentes em muitas regiões que foram loteadas sem planejamento técnico ambiental. É em homenagem a estes, invisíveis ou extintos, que escolhi este tópico: “Águas que correram entre nossos parreirais”.
GEORGE ANDRÉ SAVY
Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.
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