A DESEJADA, sonho a ser conquistado ou ouro de tolo?

A DESEJADA
Não, o sonho do Sebastiãozinho não é tão rebelde como o dos personagens de Peter Fonda e Dennis Hopper no filme Easy Rider, de 1969. Nosso jovem operário sonha com a liberdade, mas suas realizações têm um sabor ímpar. Foto In: https://www.telegraph.co.uk/travel/destinations/north-america/united-states/las-vegas/articles/easy-rider-road-trip-how-to-do-it/

A desejada representa os sonhos míticos do operariado brasileiro. Com o suor do seu trabalho Sebastião, o Tiãozinho, irá conquistar seus pequenos desejos, será que sonhar é o mesmo que descobrir ouro de tolo?

Dentre todos os funcionários matutinos da linha de produção, ele, Tiãozinho, era um dos únicos que ainda necessitava de busão. Não porque não tinha uma moeda sequer, nada disso. Pelo visto ainda não era a hora de motorizar-se. Outros colegas de trabalho também não tinham veículos particulares.

Há o Geníldo Galo Véio, lá de Francisco Morato que, apesar de fumante, parece ter três pulmões; vai e volta de bicicleta todos os dias: pagar duas pensões para duas ex-esposas exige dele o sacrifício ciclístico. Tem também o Vicente Ceará, que aluga uma edícula longe pra burro, lá num cafundó pra depois de Itupeva, mas conta com a sorte porque vem no ônibus da empresa – e pra esse luxo acorda às 04h10 da matina, o que lhe dá uma baita insônia misturada com gastrite. O Silvio Meira Careca, mecânico dos bons, mora distante da fábrica, provavelmente lá pros lados do Jardim Tamoio, mas surge a pé e some na garupa da Ligeirinha, uma 125 cilindradas, seminova, do cunhado, o Serginho Raposa, mas é porque o Sílvio Careca tem mania de esperteza e, como é abusado mesmo, dá sempre seus jeitos de trocar vale-transporte ou fazer rolo com acesta básica, sempre junto do outro pilantra, o Alberto, o Cara-de-Espantar-Neném, a coisa não é muito vantajosa, mas é o jeito pra sobrar dinheiro pra pinga. Quando Silvio Careca fica sem um centavo, empresta dos enteados, mas sempre devolve, demora, mas devolve.

Quem vai bem é o Chicão do Rio Acima; virou encarregado logo depois da justa causa do Avelino Cabeçudo, crescera no conceito dos patrões, mas o desconforto em dar ordens o acompanha sempre, ele vê nisso tudo muitas injustiças.Todo mundo gosta do Chicão, ele entrou na fábrica, faz muito tempo, com o Corcel 73 ,tipo o da música do Raul Seixas (ele chamava de Limusine e os ainda mais velhos de firma chamavam de Limãozinho); passou pro Passat Iraquiano vermelho, que fundiu o motor; depois vieram a Caravan Comodoro e o Tempra; e poucas semanas atrás bateu rolo com seu Santana Verde-musgo e diz, com cautela, que vai pegar um Celtinha, quase zerado, de único dono, para dar de presente pra mulher.Realmente, todo mundo gosta do Chicão.O oposto acontece com o Valmir Buenno, que a gente chama de Boca de Gamela e todo mundo sabe que foi ele o acaguete safado que ferrou a vida do Cidinho, do Ditão e do Robelô da portaria. O Buenno, que sempre está de carrão,faz duas ou três horas de janta e sai, apesar de casado, com a moça do RH, uma coroa metida a rica com uma casa de praia em Peruíbe, é o maior traíra, virou encarregado porque dedurou meio mundo. Dizem que ele tem um Opalão Amarelo-manga só pra ostentar aos finais de semana.

A empresa é boa, multinacional, e os patrões nem pegam muito no pé, quase não aparece maquino chão da fábrica. Tem o seu Rubens Kłamca Jr., um dos donos (estaciona por perto sua Virago 535 cor de sangue pisado, somente nas sextas), que aparece vez em nunca para olhar todo mundo de rabo de olho e exigir que o ambiente dos trabalhadores esteja sempre limpo, ele detesta vagabundagem e palavrão, menos no fim de ano, no churrasco da firma,daí até joga no nosso time de funcionários. Só marca gols de pênalti.

A empresa é boa e em dia de hora-extra, ou faxina trimestral, manda sempre vir marmita da melhor churrascaria da cidade pra peãozada. Uma cozinha fica atrás do escritório da Gerência, mas a gente quase que nem nunca utiliza, já a outra, sempre em reforma, mais afastada, vive às moscas, nem omicro-ondas é limpo. Resta ao pessoal fazer as horinhas do lanche, do café ou da janta no banheiro, mas para falar a vera isso só ocorre durante os sábados e domingos de muita resenha.

A empresa é boa, cuida bem dos funcionários como se fosse uma família, não tem problema tão grande que não seja logo resolvido. Até o Zé Pedro Mineiro deu sorte ano passado quando foi afastado por conta do tombo feio que teve. Ele reapareceu um tempinho depois, remendado no bucho saliente, readmitido e com uns 25% de salário a mais do que os outros empacotadores, só que jamais fala do acidente.

Tiãozinho, ajudante geral, não tem carro, nunca teve sequer bicicleta pra chamar de sua, apesar de pacato é enérgico e dá duro no carregamento e descarregamento. Desde quando deixou São Roque, mas não esta São Roque dos vinhos, daqui do lado, não, é a São Roque do Bate Quente, na Bahia, veio pra cá com dois ou três molambos nas costas, muita sabedoria e um canivete, só por precaução, para não ser ludibriado por gente nenhuma de cidade grande nenhuma. Chegou já faz um tempinho, cerca de ano e meio, mora com o irmão mais velho a cunhada, dois sobrinhos e um gato. A casa tem cômodos bons, nada que seja tão pequeno que não possa ser dividido por madeiras compensadas ou cortinas, mas os móveis de doações estão sempre gastos, carcomidos por conta da enchente do córrego, coisa que não se resolve nunca que nunca.

Tião não quer ficar aqui por mais muito tempo, essa vida de migrante não é de bom gosto, ele até releva, mas estranha o fato de o irmão não querer voltar pra perto dos pais. O bairro é distante do centro, Jardim-alguma-coisa, a mercearia da esquina só vende coisa enlatada, prestes a vencer, e nunca que macarrão todo dia vai cair no seu gosto. Ele quer mesmo é fazer o pé de meia, continuar os estudos, tocar sua vida e retornar pra onde tudo é mais perto, mais seu.

A matemática e a boa memória, tal como mantos mágicos, o acompanham desde após a morte do avô. Já naquele velório lembraria para sempre que setenta e quatro pessoas, entre afetos e desafetos, circundaram o caixão ao longo de seis horas e doze minutos de velório, mas 1/4 não estava com trajes de chorar-mortos, rememorava sempre as quinze coroas de flores e num só lance de recuo das lembranças, sentia o lamento, o luto, a bebedeira, os odores e talvez até mesmo quantidade exata de flores que perfumavam o ataúde. Estranhamente os números o importunam, as mãos insistem em ficar nos bolsos, mania que é piada entre nós todos aqui no pátio cinza-zinabre da fábrica: enumerar as coisas é talvez um vício para o Tiãozinho Bate Quente; o último ano e meio no emprego tem provado isso.

Paga água-e-luz por conta do acordo mudo entre seus olhos e os do irmão – olhos verdes e melancólicos. Suporta os sobrinhos estridentes, mas some quando dá– seja para fazer mais e mais horas-extras ou desandar um pouco em companhia do Chicão, para puteiros e botecos. Tiãozinho olha, mas não prova; saliva, mas não morde: “tudo aqui é custoso demais, fabulação, maquiagem”, pensa.Bom mesmo era é o vento quebrando na cara nas idas e voltas dos trajetos noturnos por conta do vidro aberto no carro do amigo Chicão.

Os cálculos deram enfim resultado, não lhe importaria mais ser chamado de mão de vaca, baiano sovina, miserável ou coisas odientas do tipo. Nunca que Tiãozinho daria seu dinheiro sagrado para sujeitos como o Sílvio Careca ou o Vitinho Loco, nem por empréstimo a juros altos, nem por súplicas de joelhos. O Serginho Raposa também é chegado em farinha, o Vitinho Loco só fala em jogo do bicho, vive pendurado, mas faz pose de empresário.

Tião sabe o duro que está dando, ele sente já aquelas dores no ombro esquerdo, só ele, no auge dos seus 20 anos, sabe a aflição repetida que é ser ele. Tião pode segredar para si mesmo que seu objetivo nunca fora partir, mas, já que partiu, fará tudo para retornar, pois a mãe precisa de ajuda e ele quer estudar. Ao menos que… Ao menos que jogasse tudo ao léu só pra ter aquele bom celular ou que fizesse um esforço ainda maior de burro-de-carga pelos pares de tênis que namorava no shopping aos finais de semana ou, ainda, se almoçasse nos bons restaurantes onde a comida não lhe desse aquele azedume no estômago pelas manhãs.

Nada disso.

O que veio foia 160 cilindradas, novinha em flor. A musa prateada antecedeu até o exame psicotécnico e, claro, a carteira de motorista, toda e qualquer noção rudimentar de Tiãozinho sobre trânsito, emplacamento e outras miudezas do mundo dos transportes era praticamente nula. Foi numa sexta à noite que ele comprou, o sábado seria de folga. Levou, a pé, a moto do centro da cidade até o bairro. Três horas e sete minutos ladeando sua pequena aquisição. Sorriso largo, larguíssimo, na penumbra da cidade-dormitório; na mochila uma brochura de boletos a pagar; num dos bolsos uma faca cromada, “por precaução”, teria dito o único e verdadeiro amigo de trabalho; e no coração um medo desafiador vindo do arrepio do instante.

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Não serão poucas as vezes que o pequeno quintal da casa do irmão se transformará em palco. Em madrugadas solitárias, um singelo circuito oval com movimentos mágicos nasce. É sempre assim: Tiãozinho retira os três lençóis que cobrem sua conquista, alisa sensualmente sua moto enquanto dialoga com os pneus ou o escapamento. Ele ainda não sabe guiar a máquina, mas imagina que dentro em breve saberá.

E há quem diga que os passeios noturnos de Sebastião e sua moto virgem de combustível já ocorreram até pelas ruas do bairro.

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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