“ADOLESCÊNCIA” dói…

adolescência

“É preciso uma aldeia para educar uma criança”. É o que diz o belo e famoso provérbio africano, disseminado por todos os cantos quando o assunto é educação, filhos, escola, sociedade. Porém, também é preciso uma aldeia para destruir uma criança. Foi numa roda de conversa com psicólogos e psicanalistas sobre a série “Adolescência” que ouvi a frase, e inevitavelmente a ficha caiu: sim, todos temos responsabilidade sobre as nossas crianças. E, apesar do esforço, estamos falhando. A série da Netflix que já é uma das mais vistas da história da plataforma não se tornou viral à toa.

Muitos pais e mães se viram nos rostos, emoções e dores dos pais de Jamie(foto), o garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de escola da mesma idade a facadas. Afinal, a família retratada é típica, classe média, estruturada, pai empreendedor que trabalha para ganhar mais fora do horário de expediente; mãe dedicada que nada deixa faltar ou de providenciar; irmã adolescente, de 17 anos, sensível, obediente, tímida, inteligente. Todos são e estão por todos neste núcleo, mas Jamie escapa e ninguém se dá conta para onde. Afinal, ele segue ali, em seu quarto, “protegido”, de fones de ouvido e olhando para a tela de seu computador.

Em pleno início de uma fase fundamental da constituição psíquica, especialmente sexual – a transição da latente infância para a pulsional adolescência – o garoto Jamie se perde em seus próprios conflitos ligados à sexualidade, sem cogitar conversar sobre eles com nenhuma pessoa, e ao mesmo tempo tentando se encaixar e encontrar sua turma, sua identidade e, principalmente, validação (em um ponto tenso da conversa com a psicóloga, Jamie grita: você me acha bonito? Você gosta de mim?).

Nota-se que a família da série Adolescência não conta com uma rede com quem possa dividir, falar, divertir-se. O núcleo é solitário e um se apega ao outro com o que cada um tem a dar. É uma família funcional – mas que carrega traumas e solidões não elaboradas em suas histórias. A mãe não se dá com seus pais; o pai é ressentido com o seu, que lhe batia e nunca o validou nem mesmo em seu aniversário de 50 anos. O passado deixou marcas nesses pais que dão o seu melhor, com disposição para fazerem diferente do que foi feito com eles, mas também estão perdidos buscando um passado imaginário em um mundo transformado e desconhecido – por onde Jamie circula livremente.  

Nas redes sociais era por onde o mundo dele se movia. Pelo Instagram, Jamie se comunicava com colegas da escola, inclusive com a garota assassinada, que havia sido exposta a toda a escola pelo ex-namorado que divulgou fotos suas nuas. Jamie e a garota não eram amigos, presencialmente nem se falavam. Mas quando Jamie tentou se aproximar dela aproveitando sua vulnerabilidade devido ao vazamento das fotos, ela iniciou um bullying contra ele na rede social, sugerindo que Jamie seria incel – celibatário involuntário, consequência por não ser popular ou ter atributos esperados pelas garotas. Ele, que já estava se identificando com posicionamentos machistas e misóginos nas “panelas” virtuais dos incels e red pills, a chamou para ir ao parque. Ela deu um fora nele. Ele lhe deu sete facadas.

Sobre esse mundo virtual que coopta mentes e subjetividades de crianças e jovens, a escola também não ofereceu espaço de diálogo. Esta, que deveria ser um braço fundamental da aldeia, está no exato oposto do que significa apoio, acolhimento, diálogo, empatia ou disciplina. A instituição escolar no filme remete à carceragem: palavras de ordem e ameaças proferidas pelos adultos; provocações ecoadas nas respostas dos alunos aos educadores. Professores não se implicam e o bullying é parte da rotina, não dita em casa. No dia seguinte à morte violenta, nenhuma fala de acolhimento. Nenhuma escuta ou chance de simbolizarem o trauma. Nenhum ato de luto. A escola segue caótica.

Apesar da ficção, muito bem conduzida em planos sequências que intensificam a experiência de assistir a série, Adolescência é o espelho do mundo real. A ficção levou ao extremo, e a realidade não precisa chegar a esse ponto para chocar e fazer a sociedade despertar.

As crianças que estão se tornando adolescentes e os adolescentes que estão caminhando para a adultez precisam do laço social como base – e é também por este laço que eles criam seus sintomas. Em casa, apesar de haver amor, Jamie não encontrou espaço de diálogo, tendo como referência a masculinidade contida de sentimentos vista em seu pai, que desejava um filho que jogasse futebol ou lutasse boxe. Jamie, especialista em fugir da Educação Física, gostava de desenhar. Outras famílias que compõem a trama também entregam a total desconexão entre os sinais que os jovens dão e a ignorância dos pais sobre o que está acontecendo com eles.

As múltiplas solidões e perdas da adolescência integram, mas não determinam esta fase. Os jovens desejam dar este lugar a conexões. Se não forem as que a aldeia toda deveria prover, serão as redes sociais a fazer este papel.

Óbvio que elas já fazem parte e não deixarão de fazer na vida dos adolescentes. Porém, o perigo hoje é iminente: sem regulamentação, as redes sociais e suas donas, as big techs, seguem despejando conteúdos duvidosos e perigosos nas telas de nossos filhos, sobrinhos, netos, alunos, vizinhos. Para elas, quanto mais engajamento e manipulação, mais lucro – não importa se os meninos estão sendo contaminados por ódios e diferenças, tornando-se validados pela violência, e as meninas, levadas à busca por aprovação por uma suposta beleza, gerando transtornos alimentares, depressão e automutilações.

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O VALOR DAS PERDAS

Que cada um, ao entender seu papel na complexidade dessa aldeia (sociedade), busque repensar. No modelo econômico que vivemos, a exaustão do trabalho impede a qualidade do diálogo – o tempo e o dinheiro são dragados a fim de dar conta tanto do necessário quanto da imposição do consumo. Na escola, crianças e adolescentes precisam ser vistas como seres em formação que precisam de referências, orientações, afeto e acolhimento sob condições mútuas e direitos. Que haja empatia e olhar cuidadoso entre amigos e vizinhos. Possibilidades de experiências, vivências, trocas e todo o arcabouço proveniente do conviver, com respeito aos gostos e desejos próprios de cada ser em sua autodescoberta.  

Em meio a essa luta, passos em direção ao reconhecimento das singularidades e das emoções desses sujeitos, ainda vulneráveis, são a base para a construção de um laço social que seja, ao menos, suficiente – família, escola, sociedade. Isso só será possível com a força afetiva e efetiva de uma verdadeira aldeia, onde todos também revejam a si próprios a partir dessa fase crucial da vida, que é a adolescência.(Foto: cena da série Adolescência, Netflix/Divulgação)

TATIANA ROSA

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