APOCALIPSE EDUCACIONAL

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Outro dia, caminhando por um colégio de classe média alta, vi uma cena que poderia servir de prólogo para qualquer distopia contemporânea. Um menino de uns nove anos, calça larga, boné para trás, chutava com raiva um cone de trânsito. Gritava palavrões que aprendeu no YouTube. Uma professora, pacientemente, tentava acalmá-lo, ao mesmo tempo que apartava duas meninas que brigavam pelo direito de serem chamadas de “líderes da turma” — novo nome para o velho posto de “melhor da classe”. Seria o apocalipse educacional?

A sala de aula, esse campo de batalha cotidiano, deixou de ser apenas espaço de transmissão de conhecimento. Tornou-se, sem aviso prévio, um laboratório de identidades, uma trincheira emocional, uma arena para o que muitos chamariam de “o fim da educação tradicional”. E talvez tenham razão. Mas talvez não seja o fim do mundo — só o fim de um mundo.

Estamos educando meninos e meninas em pleno século XXI, com referências do século passado, com adultos formados em outro milênio, e com tecnologias que evoluem mais rápido do que o afeto. O resultado? Um cenário que beira o apocalipse emocional.

De um lado, os meninos: ensinados, desde pequenos, a não demonstrar fragilidade. “Engole o choro”, “isso é coisa de menina”, “homem que é homem não abaixa a cabeça”. Crescem achando que ser forte é não sentir, que ser líder é ser temido, que ser homem é não falhar — nem pedir ajuda.

No século XXI, esses meninos se veem pressionados por um mundo que cobra deles sensibilidade, empatia e escuta — virtudes que nunca lhes foram ensinadas. São acusados de serem “machistas”, mas foram criados para isso. São cobrados por não saber cuidar, mas nunca foram cuidados com delicadeza.

Do outro lado, as meninas: incentivadas desde cedo a serem boas em tudo. Excelentes alunas, responsáveis, sorridentes, independentes, produtivas, belas — mas naturais. Líderes — mas humildes. Competentes — mas afetivas. É um malabarismo emocional de fazer inveja a qualquer artista de circo.

Elas sabem que podem ser o que quiserem, mas também sabem que não podem errar. O peso da perfeição sobre os ombros de uma menina do século XXI é, por vezes, mais cruel do que a submissão do passado. Porque é uma cobrança que vem disfarçada de liberdade.

A escola, essa velha senhora que tenta aprender a linguagem dos emojis, se vê em crise. Como ensinar para meninos e meninas que vivem mais tempo em telas do que em árvores? Como formar valores em uma geração que não sabe esperar trinta segundos por um vídeo carregar?

Mais grave: como preparar seres humanos para um mundo que nem nós, adultos, compreendemos mais? Entre discursos que exaltam a igualdade de gênero e práticas escolares ainda enraizadas na diferenciação, vemos os meninos sendo suspensos por agressividade, enquanto as meninas adoecem em silêncio por ansiedade e exaustão. Vemos pais e mães que terceirizam limites e afetos, acreditando que a escola — e agora, os algoritmos — saberão o que é melhor.

E o que sobra para a educação? Uma babel de exigências contraditórias: educar para o mercado, para o afeto, para a diversidade, para o sucesso, para a sustentabilidade, para o respeito, para o digital — e para a prova da semana que vem.

Alguns chamam de “crise”. Outros, mais apocalípticos, falam em “colapso educacional”. Mas talvez estejamos apenas assistindo, sem legenda, à transição mais dramática da história recente da pedagogia: o momento em que as identidades deixaram de ser entregues prontas e passaram a ser construídas, uma a uma, tijolo por tijolo.

Isso assusta. Porque nos obriga a desaprender o que considerávamos certo. Sim, os meninos precisam aprender que podem chorar, que podem perder, que podem cuidar. Mas quem vai ensiná-los, se seus pais ainda têm medo do próprio afeto? Sim, as meninas precisam aprender que podem errar, descansar, dizer “não” — e ainda assim, serem amadas e respeitadas. Mas quem vai ensinar, se suas mães ainda se cobram perfeição silenciosa?

Talvez o maior sinal do apocalipse educacional seja o fato de que os adultos perderam o rumo. Pais que têm medo de educar. Professores que têm medo de ser cancelados. Alunos que têm medo de tudo — menos da indiferença. A verdade é que não estamos diante de um apocalipse no sentido bíblico da destruição total. Estamos diante de um apocalipse no sentido original da palavra: revelação.

A educação dos meninos e das meninas no século XXI está revelando nossas próprias contradições. Está expondo as feridas da masculinidade tóxica, os vícios da feminilidade domesticada, os limites das estruturas escolares, a falência dos modelos parentais baseados na autoridade pelo medo.

Mas essa revelação pode ser o início de algo novo. De meninos que saibam que a raiva não é a única resposta. De meninas que saibam que o cansaço não é fracasso. De escolas que saibam que ensinar a escutar é tão importante quanto ensinar a escrever.

O apocalipse, afinal, pode ser o começo. Mas só será se tivermos coragem de nos despir do velho sem medo do novo. E de ensinar às próximas gerações que a verdadeira educação não é a que reproduz, mas a que transforma.

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A educação do século XXI precisa urgentemente reaprender o óbvio: que antes de ensinar meninos e meninas a serem engenheiros, médicos ou programadores, precisamos ensiná-los a serem humanos. Humanos imperfeitos, afetivos, respeitosos, éticos — e sobretudo, livres.

Se isso parecer pouco, ou ingênuo, talvez o apocalipse já tenha começado — dentro de nós. Mas se isso for possível, mesmo que só em parte, talvez estejamos apenas vivendo o necessário caos de uma nova aurora. Afinal, todo novo mundo começa com o colapso de um antigo.

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

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