Para CRIAR, artista deve se reinventar para além de sua categoria

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Em várias edições desta coluna, já expus as dores de ser um artista independente. Em outras, convidei artistas locais para falarem não só de seus projetos, mas também das dificuldades que enfrentam. Assim, parto do princípio de que você, leitor, já entende – ao menos em parte – o quão sinuoso é o nosso caminho. Quase sempre, minhas reflexões envolvem questões sociais, políticas ou econômicas, e não poderia ser diferente. Afinal, resistir e sobreviver como artista no interior de São Paulo é uma tarefa árdua, atravessada por desafios que vão desde a falta de incentivo até o reconhecimento limitado. Não é por acaso que, segundo dados do Ministério da Cultura, 70% dos projetos de incentivo cultural ainda estão concentrados nas capitais, deixando espaços interiores com escasso apoio financeiro. Hoje, no entanto, quero trazer uma perspectiva distinta.

Ao nos definirmos como algo, automaticamente nos vemos encaixados em uma categoria. Em qualquer área de trabalho, isso é natural – mas, no campo artístico, essa segmentação pode ser tanto uma bênção quanto um obstáculo. Quem desenha personagens, por exemplo, logo passa a ser entendido como ilustrador ou cartunista; quem escreve versos se torna poeta; e assim por diante. Em outras profissões, essa categorização pode até não ser um problema, mas no meio artístico, onde a criatividade deve fluir sem amarras, percebo o quanto isso pode nos limitar.

Na minha trajetória, atuo como professora de inglês, artista e produtora cultural. O ensino de línguas ocupa um espaço específico e funcional em minha vida, onde ser categorizada como professora não interfere na minha liberdade criativa. No entanto, quando se trata de arte, a história é diferente. A partir do momento em que nos conformamos em ser “apenas” uma coisa – seja tatuador, grafiteiro, dançarino ou cantor –, corremos o risco de colocar nossa criação dentro de uma caixa. Picasso já dizia que “todo ato de criação é, antes de tudo, um ato de destruição”. Se nos rendermos a uma única definição, é a própria arte que sai perdendo. A criatividade, afinal, é como um sopro delicado; basta limitar suas vias de expressão para que ela comece a enfraquecer, tornando-se repetitiva, estagnada.

Durante minha trajetória como drag queen, levei anos estruturando performances de uma forma específica, até perceber que minha fonte de inspiração parecia ter secado. Fazia sempre as mesmas coisas, e minha arte começou a perder sentido. Esse não foi o primeiro momento em que me senti assim: quando jovem, desenhava compulsivamente, até que, sem perceber, me vi sem um propósito, desenhando sempre de um jeito previsível. Foi aí que percebi que as categorias e as expectativas externas estavam sufocando minha arte, tirando dela o ar que precisava para respirar. Precisava romper as amarras dessas “caixas”.

Um dia, parada, ouvindo música e refletindo sobre todas as formas de expressão que conhecia, tive uma ideia: uma performance com pintura! Mas, e se eu incluísse também um poema? De repente, uma enxurrada de possibilidades tomou conta de mim. Tudo o que precisava era uma mudança de perspectiva, ou, nesta metáfora, uma chave afiada para cortar as fitas adesivas que me prendiam em caixas tão rígidas e quadradas.

Assim, fui em frente, sem saber exatamente como fazer, mas determinada a explorar todos esses caminhos. Escolhi as músicas, escrevi um poema, preparei projeções visuais, comprei tintas e, no Drag Vibes deste ano, evento promovido pelo coletivo Tô de Drag, apresentei algo único: dublagem, pintura e poesia se entrelaçaram no palco. Diante de cerca de 50 pessoas, dublei, pintei um vestido branco com minhas próprias mãos, e recitei meu poema. Pela primeira vez, não me vi apenas como drag, pintora ou escritora, poeta. Me vi como artista, em toda a minha essência e como precisava daquilo!

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Meu apelo não é que todos façam mil e uma coisas ou rejeitem as categorias que lhes foram atribuídas. O que quero, acima de tudo, é incentivar a busca pela liberdade criativa, pela fluidez das ideias, que tantas vezes sufocamos sem perceber.

Deixo aqui um convite: que cada um de nós se pergunte, de vez em quando, quais são as fronteiras que nos limitam. Será que não podemos rasgá-las, nem que seja só um pouquinho, para ver onde nossa criatividade realmente pode nos levar? Que prestigiemos artistas independentes, incentivando a diversidade criativa nos eventos locais, em uma troca onde tanto o artista quanto o público se redescubram. Afinal, é justamente na mistura que reside a essência do que é ser artista.(Foto: Stella Pinheiro – QuêCola)

ANNA CLARA BUENO

De nome artístico Anubis Blackwood, é drag queen, artista performática e visual, professora de inglês, palestrante e produtora cultural. É membro do coletivo Tô de Drag, o primeiro de arte drag de Jundiaí e região. Colabora com o ‘Grafia Drag’, da UFRGS. Produz o festival Drag Vibes em colaboração com o coletivo, para democratizar a arte drag, mostrar sua versatilidade e levá-la a espaços e públicos novos por meio de performances plurais e muito diálogo.

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