O Zé era capiau de Marialva. O capiau mais original possível. Costumava dizer: “Avisa se tiver balangando muito”. Deste tipo….
O Zé era ‘gato’. Gato é como se chama o motorista de caminhão de boia-frias. Antigamente era caminhão mesmo, carroceria simples, coberta com lona e que chacoalhava mais que pandeiro no carnaval. Hoje o transporte é feito por ônibus.
A gente morava em Londrina, no Parigot de Sousa, bem longe da UEL, a Universidade Estadual. Se você mora em Jundiaí é mais ou menos da Agapeama ao Fazenda Grande. Em São Paulo, seria atravessar a Marginal Pinheiros, da Bandeirantes, até Santo Amaro. No Rio, do Catete ao Recreio. Assim… de Nárnia a Hogwarts, do Arraial de Tucanos ao Reino das Águas Claras.
A carona nossa de cada dia era o caminhão do Zé. A tripulação era um povo simples, sofrido e bacana, distribuído nas roças de café, soja e algodão.
Garrafa térmica com o mais puro café e cacetinho com manteiga de garrafa era nossa primeira refeição… às 3h30. Cacetinho é outro nome para o pão francês.
O primeiro busão era às 4 e já vinha lotado… rodava toda a cidade e chegava na UEL às 7… quando não quebrava… então não dava pra arriscar.
O Zé me olhava como quem queria coisa…
Eu não era bonita nem feia.
Passava do bonitinha… era um bonita relativo, dispendioso. Dependia do dia (se chovesse, meu cabelo desgrenhava… época em que não existia creme para pentear… sabe o que é isso?…) da roupa, do humor, do ângulo e também da carência ou teor alcoólico do expectador, entendeu?
Mas o Zé me achava bonita e dizia que eu parecia uma flor de algodão. Eu ria imaginando a delicadeza do algodão… a brancura, e eu, estabanadamente morena, achava bonita a comparação surrealista do capiau quase apaixonado. Meu coração tinha inquilino, mas ele dizia que despejava qualquer um…
O Zé era também intelectualmente ambicioso e sem se importar com seu grau de instrução que o limitava a dizer ‘iorgute’ e ‘balangar’, gostava de conversar com quem sabia mais que ele. Éramos nós três… as meninas da UEL, com quem dividia a boleia do caminhão, que ele buscava aprender.
Perguntava tudo… sobre os cursos, sobre nossas cidades (sempre alerta a possibilidades de um trabalho melhor em cidades grandes), sobre assuntos aleatórios e sobre nossas vidas.
Questionador o Zé. Simplão. Bonito. Limpinho e perfumado num cheiro familiar (acho que a colônia de Pinho pós-barba que meu tio João usava).
A gente chegava a discutir o projeto de um novo Zé depois de um banho de loja e livros. Mas minhas fantasias cancerianas me dificultavam ver outro Zé que não fosse aquele ‘gato’ de pele queimada de sol, camisa surrada, calças de tergal (que davam um não sei que de elegância e até superioridade aos tripulantes), os óculos aviador escondendo os olhos castanhos claros… beleza rústica e bem interessante.
O Zé era sossegado e falava manso. Certa sabedoria no que dizia superava seu português ruim. Se perdia numa prosa… e a gente sempre acelerando… olha a hora, Zé! Calma… dizia ele… a gente chega lá…
Anos de carona renderam uma amizade eterna.
A última vez que vi o Zé Capiau, ele tava de casamento marcado com a filha do dono de uma das fazendas para quem trabalhava. As meninas riram desacreditadas porque eu senti uma ponta de ciúme. Era alguém que, mais que visto, havia enxergado aquele Zé.
Dizia ter aprendido muito com a gente, sem saber o quanto nos havia ensinado.
OUTROS TEXTOS DE ROSITA VERAS
Com ele eu aprendi tanto… desde a sinalização entre caminhoneiros ou que entre a flor e fruto o café se chama “chumbinho” (ele sabia tudo de café e era o melhor Barista) ou que é fácil perder o polegar na colheita do algodão e também o grau de umidade certa para a colheita da soja. E coisas que me fizeram um bem tão grande que o Zé nem imagina. Como fechar os olhos pra sentir o cheiro da relva ao amanhecer; botar a mão em forma de concha na janela do carro pra sentir o peso do vento; que a pressa em chegar me faz perder a beleza do momento; que as pessoas mais simples são as mais felizes; que o café tem que ser quente e bem saboreado; que conversando tudo se ajeita; que não importa a maneira como você ouve as coisas, mas a maneira como você as sente; que a gente sempre aprende com as pessoas, não importando a instrução que nos distancie; que na verdade não é o grau de instrução que nos distancia, mas a falta de humildade; que fazer planos é bom, mas viver de fazer planos é perder a vida aos poucos; que um sonho nunca está longe do nosso alcance, do contrário é pesadelo (o Zé tinha um senso de humor incrível); que olhar a vida através de janelas, nos faz esquecer as portas abertas e que a gente sempre se arrepende por não fazer o que o coração e a cabeça desejam juntos.
Tudo isso eu ouvi nas madrugadas mais frias, nos caminhos mais longos, do capiau mais matuto que sabia preparar um bom café e enxergar o melhor da vida.
Saudade tem nome, cheiro de relva molhada e cara de estrada, mas o gosto… eu não conheci…(Foto: blogwlmscania.itaipumg.com.br/Artigo originalmente publicado em 7/1/2023)
ROSITA VERAS
É escritora, ghostwriter e articulista
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