DRAG QUEEN responde a vereador Val Freitas

drag

Em outubro do ano passado, o vereador Val Freitas apresentou moção de repúdio à programação cultural do Mês da Diversidade do Sesc Jundiaí. Na justificativa, o parlamentar argumentou que alguns dos eventos permitiram a entrada de crianças e adolescentes. “Além disso, as intervenções não se enquadram como expressão cultural teatral, cinematográfica, musical, literária ou exposição artística”, afirma. Na época, o Sesc informou que não comentaria a iniciativa de Val. A votação da moção deveria ter ocorrido no dia 28 de novembro. Porém, Val a retirou da pauta. Ele explicou que tinha se reunido com a direção do Sesc e que fora informado que o Sesc divulgara dados equivocados sobre o evento.

Vereador Val Freitas

No último dia 19, Anna Clara Bueno, de nome artístico Anubis Blackwood(foto principal), publicou artigo no site da Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), na editoria ‘Grafia Drag’, respondendo ao vereador Val. Ela é drag queen, artista performática e visual, professora, palestrante e produtora cultural com mais de oito anos de atuação no cenário cultural em São Paulo. Anna conta que foi contratada para o evento do Sesc de Jundiaí, onde participou do ‘Baile das Gayrotas’, performando e animando o público. Ela conta que mora há 18 anos na região de Jundiaí e acredita que a moção pode tê-la prejudicado já que assim como outras drags, tem dificuldade para conseguir espaços públicos para apresentações. “Quem quiser nos contratar poderá ter receio das repercussões por causa desta moção”, explica. O Jundiaí Agora encaminhou o artigo de Anna para o e-mail do gabinete do parlamentar, informando que ele poderia respondê-lo. Até o momento, o JA não recebeu retorno.

O artigo publicado no site da UFRGS, na íntegra:

Drag é arte sim! Diante da censura, a autoafirmação

Inquieta, me peguei questionando, matutando sobre a arte transformista e drag, ao que surgiram essas perguntas:

Em quantos espaços nossos corpos cabem dentro da arte? A quais áreas artísticas estamos atrelades? Onde temos nossa arte reconhecida e por quem? Será que somos respeitades em pé de igualdade com as demais classes artísticas?

Essas questões surgiram depois que Val Freitas, vereador em Jundiaí, apresentou a moção de repúdio 570/2023 na Câmara de Vereadores de Jundiaí contra projetos de arte drag dos quais fiz parte e que aconteceram no Sesc da cidade. A proposição foi protocolada em 22 de outubro de 2023, tendo sido retirada pelo autor no dia 28 de novembro de 2023. Foi a oitava iniciativa contra a população LGBTQIAP+ no ano. O ato covarde adentrou em minha vida quando vi tudo isso por meio do Jundiaí Agora. Em momento algum esse homem e seu time sequer presenciaram esses eventos ao vivo ou nos contataram, fizeram essa moção sem nenhuma ideia concreta do que ali aconteceu. Pelo visto fui enquadrada, como se estivesse participando de projetos escandalosos, de mau gosto! 

As atividades colocadas em prática foram essas: uma oficina drag onde ensinei conceitos de maquiagem, dei dicas para achar o alterego dentro de si e, junto de um professor de dança, fizemos exercícios de noção corporal, similar àqueles que se vê em aulas de teatro; também produzimos uma festa de classificação livre, o queridíssimo Baile das Gayrotas que, além de  expor um acervo de montação, visava abrir o palco para quem quisesse performar com músicas previamente estipuladas, atividade essa também de classificação livre (aliás um projeto extremamente acessível, ordenado e inspirador); além disso, tivemos uma roda de conversa sobre vivências drag, onde estavam presentes Divinna Synik e Icona Pink, drags da antiga e nova gerações dividindo suas alegrias e desafios ao longo de suas carreiras. Parecem eventos escandalosos, dignos de horas de pauta que duraram meses em uma Câmara? É evidente que não!  Mas esse foi o meu pensamento, não o dele. Segundo a moção de repúdio, esses projetos dos quais fiz parte “não se enquadram como expressão cultural teatral, cinematográfica, musical, literária ou exposição artística”, portanto, não deveriam ocupar espaços como o Sesc. “Como pode haver tamanha ignorância?”, pergunto  eu.

Tudo o que ele disse que não cabia na arte drag era justamente tudo o que a arte drag significa para mim e para muitos outres artistas. É muito óbvio que esse não foi inicialmente um ato de não compreensão sobre o que é e onde cabe a arte drag. Aquele homem, aqueles demais políticos foram primordialmente LGBTQfóbicos e ponto. Queriam, mais uma vez, nos tirar do spotlight, nos silenciar, nos criminalizar, nos banir dos espaço públicos, queriam nos ver mesmo é sem um emprego, longe de ambientes culturais sérios como o Sesc. A verdade é que se doeram ao ver um corpo LGBTQIAP+ num banner na frente daquele espaço público, não suportam ver nossas existências e práticas culturais sendo afirmadas e valorizadas como arte. Essa não foi a primeira vez que não entenderam o que faço e sei que não será a última. A desinformação misturada com a LGBTfobia gera esse desprazer de ter nossos trabalhos e nossas vidas deturpadas.

Não me surpreendeu que ele se incomodasse, afinal, é um pastor de idade e direitista. Eu já esperava essa reação de alguém como ele, mas será que o não reconhecimento termina aí? Nessas ondas de questionar o ambiente que estou inserida, analisando até mesmo quem está mais perto de mim, um gosto amargo veio à boca quando percebi que, talvez, a maneira que essas pessoas veem a arte transformista e drag não seja tão distinta assim desses indivíduos fora das bolhas que pertenço, pelo menos não se focarmos na insciência e no desmerecimento. A drag no Brasil nunca é levada a sério, não é levada a sério nem por quem esperamos que levasse, a própria classe artística, que pode ir de atores de teatro a dançarinos contemporâneos, de pintores a maquiadores de passarela. Nesse baque, entendi e afirmei mentalmente que a arte drag é um pouco de cada uma dessas classes e muito mais. Mas por que é tão difícil nos sentir pertencentes a elas genuinamente? E por que é tão dissociável àqueles que veem nossa expressão de fora? 

Antes de me descobrir drag, já havia me descoberto artista visual e sonhava em ser pintora, diretora criativa, estilista…na verdade, queria mesmo era ser reconhecida como artista, acima de tudo. Talvez, devido a isso, sempre procurei no meu eu criativo formas diferentes de encarar e compreender a arte drag, afinal queria que esses outros interesses criativos conversassem entre si. Isso era mesmo o que eu almejava, porém, os anos se passaram, as experiências foram batendo em minha porta e percebi que no mundo onde sou inserida, provavelmente nunca conseguiria ter esse “reconhecimento como artista acima de tudo”. Hoje, analisando o quanto tive minha arte podada dói, como dói! Me machuca perceber que ainda esperam que eu habite as baladas (e apenas elas), mas nunca as galerias de arte. Ainda esperam que minha arte percorra por um Reels do Instagram de maquiagem, mas não uma peça de teatro ou fazendo uma intervenção artística digna de um centro cultural renomado. 

Sempre vão querer impor onde devemos estar ou não estar, o que deveríamos ser ou não ser, e pensando bem, é assim em qualquer área da vida, com nossa bolha queer não seria diferente. Já ouvi dizerem tantas ideias carregadas de irrealidade perante a arte drag. Poderia ser pela popular confusão em achar que nossa estética tem que seguir os padrões estrangeiros, daqueles que se vê em reality shows drag. Há quem nos veja como maquiadores, e isso é raso. Há quem nos categorize apenas como performers de vida noturna, e isso é um ponto de vista preconceituoso. Há quem não tenha um pingo de conhecimento da nossa história e luta, e isso é ignorante. O irônico é que muitas vezes começamos a nos montar e fazemos o que fazemos justamente para nos sentirmos ilimitades e livres.

Como já sugeri, alguns desses dizeres absurdos podem partir até mesmo de outres profissionais da área, pessoas próximas ou até mesmo de nós! Nessa crítica não aponto o dedo para aqueles que repassam esses pensamentos em frente, pelo contrário: entendo que todes fazemos parte do mesmo sistema tantas vezes tóxico. Dentro disso, podemos ter todos esses preceitos marcados em nosso DNA criativo por não termos sido convidades a pensar diferente. Já pensei de muitas maneiras que, hoje, vejo o quanto são superficiais, dentre elas já me fizeram acreditar que drags são como as palhaças do mundo LGBTQIAP+. Depois de passar anos imersa nos devaneios misturados com vivências, refleti se esse tipo de afirmação é o suficiente para nós…obviamente não é, e nem sei se algum dia foi. 

Afunilando os pensamentos críticos para o meio artístico, costumo sentir, por meio de certos comentários e tons, que para outros  artistas o que exerço beira o exótico, o supérfluo e o infundado. Desaponta perceber o quanto nós, drags, bebemos de tantas outras fontes criativas, pesquisamos, enquanto existem colegas que também trabalham com arte e cultura que não fazem ideia do que fazemos, ou veem o mínimo e passam a generalizar e achar que já viram tudo.

Ao tentar realizar o sonho de mesclar a arte drag com demais expressões artísticas, passei a procurar intensamente formas de existir  além da balada, que embora ame, sempre soube que minha drag não cabia apenas ali. Saindo dela, vi a quantidade de diálogos que perdi para o som abafado e alto, percebi que passei anos rodeada de pessoas que achava que conhecia, mas não havia construído tantas ideias conjuntas assim. Passei a buscar formas de, junto do meu coletivo drag, criar espaços para conversar com as pessoas, levar a arte drag para um lado afetuoso que nunca havia sentido. Aliás, criar um coletivo drag também foi um ato de união e amor: todes participamos do mesmo concurso para eleger a drag da Parada de Jundiaí e percebemos que juntes seríamos mais fortes. Pois bem, por meio de uma competição construímos uma base de fraternidade, afinal, aquela disputa ferrenha entre drags está se tornando démodé. Graças a Deusa!

Demorei para achar artistas (que muitas vezes não são drag) que buscavam algo parecido com o que busco, mas esse momento veio e hoje entendo o quanto precisamos dessas outras pessoas para que todas nossas metas sejam alcançadas, e é preciso ajudar para ser ajudade. Em conclusão, uma andorinha só não faz verão! É no coletivo que encontramos forças para continuar nossos projetos apesar das dificuldades e das censuras políticas aos nossos trabalhos e existências.  Nossa arte é ilimitada, pode ter a forma que quisermos, novos caminhos podem ser traçados do jeito que escolhermos. Pensemos para  além das imposições e deixemos que os faladores vivam suas contradições!

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