Escrevo este artigo na segunda-feira, dia 5. Neste exato momento o Brasil entra em campo para enfrentar a Coreia do Sul. E mais uma vez que consultaram sobre meu palpite, justamente porque todos os atletas lesionados retornam a campo; dei meu palpite, bem apertado, mas ainda assim com vitória para nosso país. Mas meu palpite causou, novamente, estranheza, porque todos estão inflando suas previsões, visto que todos craques estarão a postos. Inclusive justificam suas ideias motivados pela volta de Neymar e Danilo, que voltam com carga total. Será? Por que tamanho fanatismo?
A questão não fica pela capacidade ou pela recuperação, mas pela leitura do quadro social e político que estamos sujeitos: inflação enganosamente controlada, preços de gêneros alimentícios de primeira necessidade nas alturas, violência descontrolada, Covid voltando com velocidade e intensidade grande, crianças com esquema vacinal pouco convincente, educação nacional precária. Mas a questão de ordem é a volta dos atletas lesionados. Parece que vivemos num país europeu de moeda forte e de alto rendimento.
Não acredito na fala dos que apoiam a toda esta euforia, como se essa fosse a alegria que o brasileiro necessita, diante de tanto sofrimento diário. Isso é balela para escamotear processos mentais ingênuos e pouco eficazes: necessitamos, mesmo é de ordem e somente com ela chegaremos a uma potência mundial mais justa e mais equilibrada. O esporte pode ser uma ferramenta, mas não é a tônica.
Hoje, na maior cidade do país, o povo está sofrendo com um descarrilamento de trem que afetou toda uma região metropolitana. Os moradores dos bairros atingidos apenas querem transporte de qualidade para ir e vir. Não estão se preocupando com resultado de jogo algum, porque sem transporte não conseguem trabalhar e sem trabalho não pagam suas contas básicas. Neste caso, falar em alegria seria falar em transporte e segurança, coisa que aqueles bairros não possuem; mas não digam que o futebol anestesiará a dor dos que ficaram perto de duas horas na fila de ônibus para ir, atrasados, ao emprego e, antecipam suas amarguras com mais duas horas de demora, na volta para casa, próximo do início da partida. Seria ingênuo demais.
Aliás, esta questão me faz lembrar do pão e circo romano, onde e quando as pessoas ganham pão e vinho para assistir seus compatriotas serem devorados por leões famintos, com outra coincidência: aos gritos e palmas e barulhos que podiam ser ouvidos à distância das arenas do dantesco espetáculo. Lembro-me, também, de um período, nos idos anos 1960, em que os jogos de nossa seleção aconteciam em datas que coincidiam com as invasões de locais entendidos como subversivos ou contrários ao sistema da época. Mas são apenas coincidências que minha memória insana traz à tona; pobre memória!!!
Uma grande curiosidade, me move a pensar nas pessoas acampadas em frente aos quartéis, protestando contra os resultados da última eleição. Estes não assistem aos jogos? Estão igualmente revoltados com tudo ou apenas com o resultado das eleições? Estão na torcida pelo país ou também entendem que há fraude nesta Copa? Esta crise deve ser respeitada? Ou isso é fruto de uma mente delirante dos que acampam nas rodovias e portas de quartéis? Ninguém responde nem fala sobre o assunto, não é? A questão é torcer. Somente torcer.
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Como profissional da saúde mental minha perspectiva em relação à saúde pública é muito rígida: o esquema vacinal deve estar completo, sempre. Entretanto, o que sabemos é que, em sua maioria, os jovens estão com terceira e quarta dose defasada, o que ocasionou esse descontrole na curva da pandemia: jogo, bebedeira e aglomeração são os componentes essenciais para que voltemos a ter sérios e graves problemas. Mas sou eu que enxergo errado. Talvez seja culpa minha, até.
E voltando ao início, se tudo parar agora, com esses 4 x 0, que parecem pouco perto da inércia e inexperiência do time coreano, será que amanhã o brasileiro acordará mais feliz? O metrô voltará a correr, em São Paulo? A crise política será minimizada? Teremos menos violência, mais saúde e melhor educação? As fortunas dos jogadores ajudarão, em parte, a sanar nossas misérias? Como eu me sentiria mais feliz se todas as respostas a estas perguntas fossem afirmativas. Mas não sou Alice e nem vivo no país das Maravilhas. Infelizmente não vivo lá.(Foto: Miguel Edi Gomes)
AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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