Geopolítica da FOME

fome

Enquanto crianças palestinas enfrentam a inanição e o mundo assiste, impotente ou indiferente, a um genocídio transmitido em tempo real, o Brasil celebra um feito histórico: saiu, novamente, do Mapa da Fome da ONU. A contradição salta aos olhos. De um lado, a fome como arma de guerra. Do outro, a fome como pauta de governo. É como se o planeta girasse em velocidades diferentes para corpos considerados mais ou menos merecedores de dignidade.

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) anunciou nesta semana que o Brasil reduziu para menos de 2,5% a proporção da população em situação de subnutrição. Essa marca significa, oficialmente, a saída do país do chamado “Mapa da Fome” — algo que, como assistente social, não consigo deixar de reconhecer como vitória de políticas públicas sérias, mesmo diante de um cenário global tão desolador.

Mas como celebrar essa conquista sem mencionar aqueles que hoje lutam para respirar sob escombros e bloqueios? Como não problematizar a seletividade da comoção e das pressões diplomáticas? Enquanto os Estados Unidos usam sua influência para tentar blindar aliados políticos de seus interesses locais — pressionando o Brasil para não avançar sobre o chamado “Clã Bolsonarista” —, pouco ou nada fazem para conter Israel em sua cruzada contra um povo que já perdeu tudo, inclusive o direito ao pão.

A fome é política – O retorno do Brasil ao Mapa da Fome entre 2018 e 2022 não foi acidente. Foi consequência. Foi o resultado direto do desmonte das políticas de proteção social, da destruição de programas como o Bolsa Família, do descaso com a agricultura familiar, e da priorização de cortes orçamentários em vez de proteção à vida.

O dado mais cruel: até 2022, 33 milhões de brasileiros enfrentavam fome diariamente. Isso não é número. É gente. Gente como a que atendo diariamente nos serviços de assistência social, que chega com o olhar baixo, envergonhada de pedir uma cesta básica, como se o problema estivesse nelas — e não no sistema que as invisibiliza.

Hoje, em 2025, essa realidade começa a mudar. O governo Lula, em dois anos, retirou mais de 24 milhões de pessoas da insegurança alimentar grave. As ações foram claras e coordenadas: ampliação do Bolsa Família com critérios mais justos, fortalecimento da alimentação escolar, incentivo à produção de alimentos pela agricultura familiar, políticas de renda e emprego com foco nos mais pobres. São essas ações que devolvem às famílias o básico: a dignidade de se alimentar.

O prato cheio do Brasil x o esvaziamento da Palestina – Enquanto celebramos essa conquista, o contraste com a Palestina não poderia ser mais brutal. Em Gaza, mães diluem farinha em água suja e chamam de “sopa”. Bebês morrem antes de falar a primeira palavra. A ONU estima que, em algumas regiões da Faixa de Gaza, 100% da população enfrenta insegurança alimentar aguda. Não é apenas fome. É a fome como arma. É o colapso da humanidade.

E onde está a pressão internacional? Onde estão os embargos, os tribunais, as sanções? Se o Brasil pode ser cobrado pela condução de um processo judicial contra ex-governantes investigados por atentarem contra a democracia, por que não há a mesma exigência para que Israel respeite as Convenções de Genebra?

Como profissional da política pública, sei que os sistemas de proteção social não nascem do nada. Eles precisam de vontade política, de orçamento, de mobilização e de pressão. Se falta isso para Gaza, é porque o mundo ainda escolhe quem pode viver com dignidade — e quem não.

Fome não é desgraça. É decisão – A fome não é uma tragédia natural. Ela não é resultado de seca, de guerra ou de falta de produção. Ela é consequência de desigualdade, de má distribuição de renda, de ausência de políticas públicas — ou da presença de políticas que concentram poder e recursos nas mãos de poucos.

O Brasil está provando, mais uma vez, que é possível virar esse jogo. Quando Lula assumiu seu terceiro mandato, colocou como prioridade tirar o país do Mapa da Fome até 2026. Alcançou em dois anos. Isso não é milagre. É gestão. É compromisso com os mais pobres.

Dados do IBGE e da FAO mostram que a pobreza extrema caiu a 4,4% — o menor patamar da história — e o desemprego recuou para 6,6%. A renda domiciliar média bateu recordes, e o índice de Gini, que mede a desigualdade, teve seu menor valor. Os 10% mais pobres tiveram aumento real de renda superior ao dos mais ricos. Isso é distribuição. Isso é justiça social na prática.

A história não começa agora – Mas vale lembrar: essa não é a primeira vez que o Brasil sai do Mapa da Fome. Já em 2014, após 11 anos de políticas públicas consistentes, o governo Lula conseguiu alcançar essa conquista inédita. A população mais vulnerável começava a ter acesso regular à alimentação adequada, e o Brasil passou a ser visto como referência internacional no combate à fome.

No entanto, como quem trabalha na ponta já sentiu na pele, esse avanço não resistiu ao desmonte. A partir de 2018, vimos — com olhos de indignação e mãos atadas — o desmonte de políticas sociais que sustentavam a dignidade de milhões. Programas essenciais foram enfraquecidos ou extintos, os equipamentos públicos deixaram de ser prioridade, e a fome voltou a bater à porta de milhões de famílias.

Nós, assistentes sociais, sentimos esse retrocesso na escuta diária do desespero. Famílias que já tinham superado a fome voltavam a procurar os CRAS em busca de um pacote de arroz. Crianças que antes comiam na escola ficaram à mercê de marmitas esporádicas. Trabalhadores informais, que dependiam da economia solidária e de programas de geração de renda, viram seu sustento desaparecer.

O retorno ao Mapa da Fome entre 2018 e 2020 não foi falha técnica. Foi decisão política. E toda decisão política tem rosto, tem efeito concreto. Em nossos atendimentos, vimos esse efeito tomar forma: o prato vazio, a geladeira apagada, o corpo subnutrido, o olhar cansado. A fome voltou porque deixaram que voltasse.

Por isso, celebrar a saída do Brasil dessa condição, agora em 2025, não é só bater palmas para uma estatística. É reconhecer o esforço de reconstrução. É dar nome aos responsáveis pela retomada de políticas públicas estruturantes. E é, acima de tudo, lembrar que políticas sociais não são luxo — são linha de frente contra o colapso da dignidade.

O papel do assistente social nesse contexto – Como assistente social, entendo que a nossa missão é sempre do lado da população vulnerabilizada. Trabalhamos na linha de frente, onde o Estado precisa ter presença concreta. E é por isso que a retirada do Brasil do Mapa da Fome é também uma vitória nossa — dos CRAS, dos CREAS, das cozinhas comunitárias, dos conselheiros tutelares, dos movimentos populares e dos voluntários que nunca deixaram o povo morrer sozinho.

Mas essa vitória não nos cega. O mesmo sistema que aqui corrige desigualdades pode, lá fora, reproduzi-las. A política internacional continua contaminada por interesses econômicos, jogos geopolíticos e uma seletividade que escancara o valor desigual das vidas. O Brasil precisa sim se posicionar com firmeza: exigir o fim da violência na Palestina com o mesmo rigor com que se cobra transparência e democracia aqui dentro.

A fome como termômetro da civilização – Estar fora do Mapa da Fome não significa que o problema acabou. Significa apenas que o risco extremo foi reduzido. Ainda há insegurança alimentar moderada, ainda há filas em frente a cozinhas solidárias, ainda há mães pulando refeições para alimentar os filhos.

Mas estar fora do mapa, no atual cenário mundial, é também uma mensagem ao mundo: é possível enfrentar a fome quando há vontade política. É possível pensar em justiça alimentar como direito e não como caridade.

Enquanto países que se dizem guardiões da democracia ignoram o sofrimento de civis em Gaza, o Brasil mostra que cuidar da própria população também é uma forma de resistência — e que a fome, em qualquer lugar, deve ser inaceitável.

Fome não tem fronteira. A solidariedade também não – Sair do Mapa da Fome da ONU é um feito histórico e necessário. Mas não podemos permitir que isso se transforme em cortina de fumaça para ignorarmos outras realidades. A fome na Palestina também nos diz respeito. O genocídio lá também nos interpela.

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Não podemos permitir que os corpos em Gaza se tornem parte da paisagem da barbárie. Que a morte por inanição se normalize como efeito colateral de disputas que nada têm a ver com as crianças que choram de fome.

Se o Brasil pode oferecer ao mundo um exemplo de como erradicar a fome com políticas públicas eficazes, que também possa oferecer voz e firmeza para denunciar os que silenciam diante da tragédia palestina. Porque enquanto houver fome — aqui, ali ou acolá — a humanidade toda estará em dívida.(Foto: Agência Brasil)

REINALDO FERNANDES

É assistente social, pós-graduado em docência no curso superior e em Gestão em Políticas Públicas, tutor presencial na Faculdade Anhanguera, membro titular do CMAS, com experiência em políticas públicas, diversidade e inclusão social. Foi o primeiro coordenador dos Direitos das Pessoas com Deficiência em Jundiaí”.

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