Lapidação tem significados variados, inclusive aquele usado na Bíblia. Aqui me refiro ao processo mais conhecido, que é o de modelar, dar forma, harmonia, estética e realçar aquilo de mais precioso e belo que um elemento possui. Refiro-me, mais precisamente, aos que estão sob os holofotes da mídia.
Da mesma forma que se faz aos minerais, ao processo de lapidação das pedras preciosas e semipreciosas, podemos fazer aos elementos humanos, a nós. E é justamente isto que tenho feito cada vez mais em minha função de revisor de livros, para atender esta crescente demanda de novatos na área literária, sobretudo no segmento de autoajuda, onde a palavrinha “miraculosa” da moda é “coach”.
Para compreendermos bem como chegamos a este degrau da escalada da vida, vamos relembrar algumas décadas atrás… O processo de lapidação de elementos humanos consiste basicamente na educação. Sutilmente junto a este processo, normalmente sempre esteve presente algum tipo de doutrinação. Na lapidação dos minerais, pedras preciosas, se ela não for bem feita, destrói o valor da pedra. Assim como é para o mineral, assim é para o elemento humano.
No processo de lapidação educacional, aqui já incluindo aquele que passei e posso citar como experiência própria, havia esforço conjunto e a consciência que para reluzir e servir – que é a missão universal de todo ser humano – é fundamental aprender. Sempre, aprendizado contínuo. Para isso foram meses e anos debruçado sobre apostilas e livros. Reforçando; não só pela presença instrutora de pais e professores, mas a presença cultural da época, da consciência de que sem esforço e dedicação não se alcança a qualidade daquilo que vai produzir.
Se por um lado havia a excelência no processo de lapidação educacional, nem sempre isto ocorria no processo de lapidação doutrinária, em diversas esferas. Conforme o interesse do lapidador, principalmente para com aquelas joias descobertas nos segmentos sociais mais vulneráveis, inclusive de condição social, a lapidação era feita com um objetivo de adorno, aparência para refletir na opinião pública, construir conceitos e extrair o melhor de sua capacidade para atender e satisfazer interesses individuais ou de um grupo. A estes elementos humanos lapidados com essas intenções, restava a perda de seus valores nobres e de sua própria identidade. A boa lapidação rende vida longa ao elemento. A má lapidação vida curta, que serviu apenas para momentos de interesse do mau lapidador. E ao elemento que sofreu a má lapidação, o descarte precoce. Quando muito, ficará pulando de mão em mão nas margens desta estrada da vida.
Os anos passaram e veio a onda de “cursos rápidos”. Diante do cenário social que o país mergulhou, junto às próprias exigências do mercado (mais preocupado com números da produção do que com qualidade), o certificado, ou diploma, passou a ser, para muitos, objeto de busca como suporte para salvar o momento, e não objeto de crescimento pessoal e profissional. Era e continua comum ouvirmos esta expressão entre algumas pessoas: “não me interessa aprender, quero é passar e pegar o diploma”.
E a partir desta onda de cursos rápidos – oficiais – começaram a surgir os clandestinos. Ou, a abertura para um novo ramo de negócios; usar a expressão “clandestino” hoje é arrumar encrenca, muitos dirão que não é clandestino, é “um novo empreendedor que vai regularizar a situação, está lutando para isso”. Na área de transportes é bem assim, e realmente não podemos falar “clandestinos” já que aqueles com mais condições trabalham nas margens da legalidade usando liminares na justiça. Mas focando na educação, muitos “cursos” de três meses, dois meses, até um mês ou semanas (!!) fornecem certificados sem valor algum, é puro estelionato. Para uma parcela do povo, já não interessa se o pseudocertificado o levará à abertura de grandes portas, o que querem é a abertura de uma porta, para salvar a situação naquele momento. Abriu uma porta, valeu.
Essa multiplicação frenética de cursos rápidos produziu e continua produzindo no país um atraso educacional violento, cujas consequências já podem ser sentidas pelos mais observadores. É a má lapidação de pedras preciosas, reforçada pela lapidação doutrinária, que voltou com a mesma força de 50 anos atrás.
Na minha área, revisão de livros e antologias destes novos autores, frutos das transformações sociais e educacionais dos anos 80 para cá, é meu trabalho lapidar textos extremamente sofríveis, não só na ortografia como na conexão de ideias. Ideias que, muitas delas, percebe-se claramente ou uma doutrinação nefasta ou aquela ansiedade motivacional, positivista, às vezes também carregada de ingredientes da tal “teologia da prosperidade”. Décadas atrás estudar teologia e psicologia levava anos. Agora se faz em alguns meses. Não, não é porque o ser humano evoluiu junto à tecnologia. A tecnologia evoluiu e o ser humano está substituindo a inteligência pela esperteza na forma de lidar com o poder que esta ferramenta tecnológica proporciona – a internet. E um bom exemplo deste uso se vê diariamente na mídia, a multiplicação frenética de “influencers”.
Todo “coach” tem pretensão de ser um “influencer”. E no currículo de muitos “coaches” consta, em algum momento de suas vidas, uma experiência de superação, uma dificuldade vencida. Este é o “ponto X” deles. E de demais “influencers” que não tem nada a ver com este novo campo da autoajuda, estão, principalmente, na artística, que está muito diferente do meio artístico de algumas décadas atrás (e muitos vão dizer que é consequência da “evolução”).
Não podemos generalizar os cursos por serem “rápidos”. Há cursos oficiais e bons, em todas as áreas, mesmo nesta área motivacional. A questão está no processo de lapidação. Quem são os lapidadores e se os lapidados prosseguirão nos estudos, com aquela consciência que citei no início do artigo, a consciência que predominava em minha época de estudante. A transição de uma época ditatorial, onde havia censura e métodos que podem ser comparados ao Apartheid, para uma democracia onde a lei que predominou foi justamente uma da época do regime militar – a do levar vantagem em tudo, conhecida como “lei do Gerson” – criou uma legião de orgulhosos formados nas “faculdades da vida”. E aqui vem a ascensão de elementos em estado bruto, que não passam por lapidação e outros passam pelas más lapidações, que conforme já descrito, trazem adorno, aparência mas destroem internamente. É este o retrato nu e cru de boa parte (boa parte, não todos) do que vemos hoje na mídia como “influencers”. São elementos mal lapidados ou em estado bruto. E ai de quem ousar questionar estas bases, estimular a reflexão sobre qual será o futuro do país e do mundo, que profissionais teremos nos próximos anos com as massas humanas embaladas no sensacionalismo midiático movido a um novo “conceito” de arte. A questão: temos hoje muita gente que canta. Mas não são cantores. Assim como muitos escrevem. Mas não são escritores. O que é cantor? O que é ser um escritor? É a pergunta que não quer calar. E a reflexão; não são cantores, mas cantam e estão fazendo sucesso. E isso basta dentro do conceito desta nova geração.
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Revisar livros neste momento social complexo é um aprendizado para mim e um desafio. É necessário lapidar a obra sem revestir o autor com uma imagem dourada. A pessoa deve se apresentar autêntica no meio literário, artístico, onde seja; nada de máscaras e não me coloco cúmplice, mascarando. A lapidação da obra escrita tem um limite, a partir daquilo, o autor deverá analisar e, se ele é um “coach”, deve olhar para si e se lapidar. Inclusive lapidar o ego. Que é o “grande mestre” nestes tempos virtuais, onde muitos querem ser os donos da verdade, saem atirando pedras para todo lado e, alguns, nem ao menos sabem interpretar textos. Ou até sabem, mas distorcem, buscam pelo em ovo, enxergam da maneira que querem ou foram doutrinados. São contra julgamentos mas julgam quando a outra pessoa não pertence ao círculo ideológico dela (pode até ser do mesmo círculo, mas como não conhece a pessoa, ela supõe).
Vivemos tempos de guerra na comunicação. As pessoas são suas amigas enquanto tudo o que se fala agrada a elas. Se falar “um a” que não concordem, ficam desconfiadas ou se afastam. E o domínio do ego, da jactância, dificulta o diálogo e o que de mais nobre nos circunda nesta escola da vida, que é o aprendizado, o convívio com o diferente e o contínuo e importante processo da lapidação de nosso tesouro humano. Sob os holofotes da mídia, nos canais no YouTube, vemos que a sociedade está indo na contramão. E como frear isto para acertar o caminhar com tantos defendendo a manutenção no estado bruto e as más lapidações? Apoiando os “meio-estudos”, a superficialidade de conhecimento? Sim, devemos ser o que somos. A autenticidade é fundamental. Mas isto não exige estacionamento na marcha do aprendizado, que normalmente vem quando a sensação de poder domina a pessoa e vira um círculo vicioso. E o pior, círculo vicioso apoiado por alguns segmentos.
GEORGE ANDRÉ SAVY
Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.
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