Desta vez vou escrever sobre uma situação quando atuava como Promotor de Justiça em Jundiaí. Tratava-se de uma ilegalidade derivada da incorreta interpretação de uma lei. Como é função do Legislativo e do Executivo editar leis, não podendo ser imposto nem pelo Ministério Público, nem pelo Judiciário, exigiu-se o correto cumprimento da legislação, com a necessária isonomia de tratamento urbanístico, ou seja, para que houvesse tratamento equilibrado, evitando-se situações de protecionismo. A Justiça mandou a Prefeitura cumprir a lei de forma adequada, gerando então a necessidade de aprimoramento da legislação.
Havia em vigor a Lei Complementar Municipal número 464/08 que proibia a instalação de novos postos de combustível em Jundiaí a uma distância inferior a 500 metros de supermercados, hipermercados, shoppings, grandes centros comerciais etc., bem como de escolas, universidades, templos religiosos, creches , asilos, hospitais e casas de saúde. A constitucionalidade dessa lei municipal foi abordada em algumas ações judiciais, entendendo-se que o Município poderia estabelecer limites à instalação de certas atividades.
Entretanto, em um outro processo, onde um interessado questionava a norma indicada, verificou-se que o Município não impedia que os estabelecimentos mencionados pela norma municipal (supermercados, shoppings, escolas, igrejas, etc.) viessem a ser instalados a menos de 500 metros dos postos de combustíveis, em flagrante quebra de isonomia, entre outros aspectos, levando à ilegalidade. Confirmou-se que novos postos de combustíveis eram impedidos de se instalar a menos de 500 metros daqueles outros estabelecimentos. Numa determinada época o Município cogitou de revogar a lei durante uma revisão do Plano Diretor, por conta da falta de isonomia de tratamento e problemas gerados. Não obstante, sem justificativas adequadas e suficientes, desistiu.
Então, após a coleta de provas através de um Inquérito Civil, o Ministério Público iniciou, em fevereiro de 2021, uma Ação Civil Pública, que recebeu o número 1002918-71.2021.8.26.0309, perante a Vara da Fazenda Pública de Jundiaí. Nela, foram apresentadas provas e argumentos no sentido de que não se conhecia acidentes com postos de combustíveis, que resultassem em explosões e danos à vizinhança, porque tal atividade é licenciada no âmbito da CETESB e Prefeitura, exigindo um conjunto de equipamentos subterrâneos e normas de segurança específicas, envolvendo licenças prévia, de instalação e de funcionamento. Também não havia nenhuma razão de ordem técnica ou justificativas suficientes para estabelecer o limite em 500 metros de distância, nem distância menor suficiente para proteção da vida e saúde de outras pessoas em estabelecimentos com aglomeração de pessoas.
Por outro lado, já que havia a lei em vigor, reconhecida como válida, não havia qualquer razão para impedir tratamento diferenciado entre um posto de combustível que quisesse se instalar, quando os demais estabelecimentos (supermercados, shoppings, escolas, igrejas, etc.) vinham sendo autorizados próximos a postos de combustíveis (a menos de 500 metros e até mesmo ao lado). Houve na investigação do Ministério Público a comprovação de que diversos estabelecimentos foram aprovados a menos de 500 metro de postos.
Tal situação feria a igualdade e isonomia de tratamento, sem alcançar o objetivo específico e explícito de segurança da Lei Complementar 464/2008. Essa situação ainda poderia gerar questionamentos sobre atividades licenciadas (enquanto outras não) e possível necessidade de revogação de licenças de estabelecimentos autorizados próximos a postos de combustíveis (menos de 500 metros), o que poderia levar o Município a arcar com indenizações suntuosas.
Invocou-se na ação do Ministério Público os princípios constitucionais de igualdade e isonomia de tratamento, bem como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Também abordou-se a função social e a livre concorrência, pois se postos de combustíveis eram proibidos a menos de 500 metros de supermercados, shoppings, escolas, igrejas, etc., tais atividades também deveriam ter sido impedidas dentro da mesma distância. Decorre ainda das normas constitucionais a necessidade de respeito à segurança jurídica, sem a qual o próprio Estado não atinge seus objetivos primordiais.
Abordou-se também os diferentes métodos de interpretação, apontando que:
a) Na interpretação gramatical, entre outros requisitos, “na dúvida, prefere-se o significado que torna geral o princípio em a norma concretizado, ao invés do que importaria numa distinção, ou exceção”, conforme Carlos Maximiliano em ‘Hermenêutica e Aplicação do Direito’; o sentido geral da LCM 464/2008 é que se postos de combustíveis eram proibidos próximos de certas atividades com aglomeração de pessoas, por questões de segurança, também estas últimas deveriam ter sido impedidas próxima daqueles;
b) Na interpretação lógica deve-se “descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito”, bem como “das normas em si, ou em conjunto, por meio do raciocínio dedutivo, obter a interpretação correta” (do mesmo autor). Neste caso a única interpretação é que se buscava segurança com distanciamento de postos de combustíveis, deveria haver isonomia de tratamento para as demais atividades que a norma mencionava, caso quisessem se instalar próximas dos postos;
c) Na interpretação sistemática “a verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida; examine-se a norma na íntegra, e mais ainda: o Direito todo, referente ao assunto. Além de comparar o dispositivo com outros afins, que formam o mesmo instituto jurídico, e com os referentes a institutos análogos; força é, também, afinal por tudo em relação com os princípios gerais, o conjunto do sistema em vigor”, também citação de Carlos Maximiliano. Aqui o sistema jurídico que institui a necessidade de um Plano Diretor válido para crescimento ordenado do Município, bem como as regras constitucionais de igualdade, isonomia, segurança jurídica, legalidade e imparcialidade, exigiam que houvesse tratamento harmônico entre as mesmas situações previstas na lei, impedindo que as atividades previstas também fossem impedidas se a menos de 500 metros de postos de combustíveis;
d) Na interpretação teleológica, busca-se o “fim” da norma, sua finalidade, seu objetivo; “O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida” (do mesmo autor). Neste contexto, se o objetivo era a segurança das pessoas, não fazia sentido aprovar obras e serviços geradores de fluxo intenso de pessoas a menos de 500 metros de postos de combustíveis, quando estes últimos não podiam ser instalados na mesma distância próximos daqueles.
Em função de todos os fundamentos, houve pedido para que a Prefeitura respeitasse a igualdade e isonomia de tratamento (sem prejuízo da segurança jurídica), ou seja, na medida em que impede postos de combustíveis a menos de 500 metros dos estabelecimentos mencionados na LCM 464/2008 (supermercados, shoppings, escolas, igrejas, etc), deveria proibir também os mesmos estabelecimentos de serem instalados a menos de 500 metros de postos de combustíveis (até que referida LCM esteja em vigor).
A Justiça deferiu liminar nesse caso e depois julgou a ação procedente em fevereiro de 2022, que transitou em julgado, ou seja, não cabia mais recursos, obrigando o Município a cumprir a determinação judicial, com a correta interpretação e isonomia de tratamento. Essa situação, entretanto, impedia inúmeros estabelecimentos de se instalarem a menos de 500 metros de postos de combustíveis, atrapalhando a aplicação do Plano Diretor do Município. Isso levou a Prefeitura a editar uma nova lei regulando a instalação de postos de combustíveis, onde procurou respeitar as premissas discutidas na ação judicial.
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A lei deve ser igual para todos, tomando-se cuidado para não gerar situações de tratamento diferenciado, nem impedir novos estabelecimentos para preservar somente quem já está estabelecido, como se houvesse um protecionismo, prejudicial à livre concorrência. Assim, conseguiu-se indiretamente, através de uma ação judicial, exigindo o tratamento isonômico na interpretação da lei, que a legislação fosse aprimorada para garantir vários princípios constitucionais e evitar a longo prazo que muitas atividades fossem questionadas e pudessem gerar indenizações que comprometeriam os cofres públicos com indenizações.(Foto: Katrin Bolovtsova/Pexels)
CLAUDEMIR BATTAGLINI
Claudemir Battaglini. Promotor de Justiça (inativo), Especialista em Direito Ambiental, Professor Universitário, Consultor Ambiental e Advogado. Vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB Subseção Jundiaí e Vice-presidente do COMDEMA Jundiaí 2023/2025. E-mail: battaglini.c7@gmail.com
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