LA LEYENDA negra: A saga dos que buscam ascendência europeia

LA LEYENDA NEGRA

La Leyenda negra retrata um pouco do ressentimento que conduz os sonhos e as expectativas de inúmeros brasileiros e brasileiras que buscam, de forma até desesperada, uma ascendência europeia.

Depois de muita espera (todos os contratempos da quarentena ocasionados pela pandemia) chegaram mês passado, do correio internacional com selos D’Espanha remetente ao bairro do Anhangabaú, em Jundiahy, as cortinas catalãs com as quais sonhava a família Costells.

Johanna sempre me diz que seu avô dizia que a mãe dele, dona Caterina, era apaixonada pelo enxoval que havia recebido no matrimônio, mas, dentre todas as peças, nada era superior ao acortinado.

Os tecidos artesanais de Catalunya (Johanna menciona Ca-ta-lu-nya num sotaque difuso, cheio de perfumes daquilo que ela não viveu) eram o que havia de mais belo sobre o mundo, segundo o clã.  A besavi de Johanna, nos derradeiros momentos de lucidez ou já nos dias delirantes, lamentava-se por ter sido a parte da família que cruzara o Atlântico em busca do novo mundo impossível. Os véus jamais passariam de geração em geração e a idosa nunca mais veria semelhante artesania.

Bisa Caterina praguejou por anos que as vidraças do seu cômodo no asilo não eram dignas das cortinas. Nem o quarto, nem a rua, nem as cicatrizes e reumatismos de muitos com quem convivia no abrigo. Sequer este país poderia receber as honrarias daqueles tecidos floridos.

Johanna e a mãe Llora rememoravam a ascendência como se esta fosse antídoto aos males do presente. Dona Llora remetia às falas da abuelita Caterina que repreendia o abandono litúrgico do latim nas missas (irritava a velhusca o fato dos padres olharem diretamente para os fiéis), as saias indecentes das enfermeiras e os modos displicentes das auxiliares de limpeza que a ajudavam com os banhos. Dizia que filhos e netos a vestiam com farrapos e desprezava a sopa rala de batatas e alho poró que serviam no início da noite, antes de apagarem as luzes do Lar Recanto da Paz, em Itatiba. Para a matriarca catalã o mundo jazia no maligno.

Anedotas eram recordadas nos almoços de domingo, todos os domingos.

Os descendentes queriam para si a infância nos arredores do bairro Somorrostro e a lembrança inverossímil de, assim como a matriarca, terem ouvido El Chino, o paizinho de Carmen Amaya, tangendo o violão. Os volteios dos cabelos e da saia, as rijas maçãs do rosto da jovem Amaya que a faziam parecer o anjo pálido cigano que era e a cadência dos passos flamencos seriam mesmo emanações da memória de dona Caterina? Minha esposa desde sempre é aficionada por música flamenca e por essa Carmen Amaya em Los Tarantos. Sempre que vê o filme – e recuso dizer que não seja incomum que o reveja –, ela diz-me reencontrar nas próprias veias o sangue de Barcelona.

Não gosto de musicais dramáticos, dão sono e os diálogos parecem órfãos de vida. Também não me interessa o flamenco porque se assemelha aos surtos – sim, uma dança de saltimbancos repleta de sapateios que na sexta ou sétima vez em que se ouve esgota qualquer oportunidade de fascínio. Vejo mais ânimo nos filmes de Charles Bronson e suas pretensões investigativas.

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Poucas frases e expressões em catalão sobreviveram como herança entre os Costells. Ainda antes de deixar sua terra a bisa havia aprendido bem o espanhol, mas o evitou enquanto pôde quando já estava no Brasil. Em vias públicas, em feiras e em mercados fazia silêncio no mais das vezes porque temia piadas.

Caterina, o esposo Agustí, os pais, as duas irmãs e Juan, o caçula, chegaram ao Rio de Janeiro em maio de 1919, nove meses depois de o Demerara atracar na antiga capital. Não adiantou dizer que eram catalães sadios e robustos no humor, carregaram a pecha de espanholada da gripe. Quando chegaram ao interior de São Paulo conseguiram desviar dos bochichos da vizinhança até o fim da pandemia.

Nesses momentos de lembranças sempre apareciam dois ou três álbuns de fotografia já muito frequentados; as anedotas sobre touradas eram descarregadas; a diferença entre o povo catalão e os outros vinha sempre à mesa; primos e primas surgiam do movediço da genealogia; e, claro, toda a encenação sobre a pureza europeia em desalinho com a mestiçagem brasileira. Difícil não ter um membro da família que não se ressentisse diante das dificuldades em tirar a dupla cidadania. Os “catalães” jundiahyenses enumeravam parentes encontrados na internet que tinham ficado do outro lado, dando continuidade à linhagem em bairros satélites entre ​​Girona e Barcelona.

A discussão mais acirrada era sobre os brasões de nobreza que talvez tivessem fundado o sobrenome. Discutiam sobre futebol europeu. Na copa; sempre La Furia.

Mas o fôlego maior era o de minha esposa. Johanna olhos cor-de-oliva. Empenhava-se em detalhar as andanças do tio Juan (de quem era afilhada e recebera o nome). Este retornou à pátria nos idos de 1937, para lutar junto aos católicos na Guerra Civil, mas, depois de perdido o polegar e o indicador da mão direita numa presepada monarquista, passou, sem remorsos, para o lado dos republicanos – escreveu em muitas cartas que era esse o lado dos justos – e, ainda assim, levou fogo-amigo no ombro de um dos primos de segunda geração e que era carlista. Segundo Johanna o soldado Juan Costells teria sofrido como prisioneiro nas mãos dum casal bolchevista ou franquista, ficou preso por dois meses, sete dias e três horas numa cela junto a dois marinheiros franceses que não acreditavam em Deus e um poeta mirrado, cujo sobrenome era D’Annunzio. No dia em que os aviões da Luftwaffe calcinaram três quartos d’Espanha o tio fabuloso fora deportado para um povoado que fazia fronteira com Alcácer-Quibir, junto ao amigo de armas do sexto pelotão d’Al-Andalus que teria tido epifanias e se convertido à possibilidade de que Dom Sebastião estivesse redivivo sob a suástica nazifascista prestes a moldar o império de mil anos na Europa.

Dessa mesma Europa da qual a bisa Caterina havia descolado pouco a pouco até sobrar-lhe somente vapores da memória e esta descendência de exilados. Dessa mesma Europa de onde dona Llora trazia, de três em três anos, imãs de geladeira, chaveiros, lápis, pequenos caganers, réplicas de moedas comemorativas, bilhetes de metrô e cartões postais. Deste continente que sobrevivia como conto de fadas e ao qual minha companheira direcionava sonhos de vacâncias.

Subsistia num velho baú da família um terço com contas de madeira e cruz de ferro; cinco fotos totalmente desbotadas com a data de 1915; e um violino, carente de cordas desde sempre porque nenhum Costells enveredou para a música ou a luthieria, assim como sequer sabiam distinguir entre independentistas e autonomistas, achavam bonitos seus cachecóis e bandeirolas da estelada blava.

Ajudei Johanna a colocar duas das cortinas aqui em nossa casa.

Ontem, ao ir dormir, já com os olhos no alento dos acortinados, estranhei-me: ao contemplar fixamente as estampas fui à deriva em meio aos adereços e um turbilhão de linhas sobrepostas de âmbar e temperos por onde emergiu minha barcaça suntuosa que depois do menor instante possível entre meus piscares começou a disparar canhões saraivadas e saraivadas de furor mas numa reviravolta de ventos me vi ajoelhado ou ajoelhei-me na penumbra ante trono maravilhoso com frisos de ouro nem bem me virei mas logo saltei dum chão de alcatifas com o punhal que batizara com nome de Santa Muerte e passo pelo fio da lâmina profusões de loucas sombras galantes portadoras de florins e sabres e em masmorra junto a homens esguios e barbas longas cujo hálito parecia ter a cor do citrino e a melancolia do poente das tardes de domingo trespassadas nos olhos cor-de-oliva de Johanna. Bisa Caterina e todos os seus Costells negavam a existência de tudo que não fosse da Catalunha ou que não fosse D’Espanha ou no pior dos percalços não fosse D’Europa negavam a gripe espanhola negariam massacres coloniais e valas comuns de ameríndios mutilados por La Roja e viviam felizes como seres ingênuos e estrangeiros a si mesmos desde o nascimento.

P.S. A imagem do jornal é de 1918, mas poderia ser o de hoje, tamanha a semelhança de pandemias e, claro, as insuficientes providências do governo.

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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