Na mesa do bar que sobrevive ao tempo e às ressacas emocionais, eles se encontram há mais de 20 anos. Quatro amigos: Luísa, Clara, Artur e Miguel. Sentam-se com a mesma naturalidade com que uma árvore lança raízes. Diante dos copos e do riso, atravessaram paixões mal resolvidas, discussões políticas, nascimentos, divórcios, silêncios e reencontros. Mas naquela sexta-feira, um tema latente rondava como fumaça de cigarro antigo: a liberdade de expressão — que, paradoxalmente, é também o que já os uniu e quase os desfez.
Clara, jornalista de olhar cortante e ironia precisa, foi a primeira a puxar o assunto, com seu típico jeito de atirar verdades como quem joga dardos em balões:
— Hoje me acusaram de censurar o amor. Veja bem, o amor! Porque critiquei um influencer que romantiza ciúmes e controle emocional… virou crime ter opinião.
Miguel, advogado que um dia quis ser poeta, revirou os olhos:
— Não é sobre opinião, Clara. É sobre o tom. Liberdade de expressão não é salvo-conduto para sermos cruéis. Ainda mais com milhões de seguidores assistindo.
Luísa mexia o gelo no copo com o canudo, como quem cutuca as próprias lembranças. Fora censurada certa vez por dizer que o casamento era uma construção social sufocante. Perdeu amigos. Perdeu um amor. Ganhou um silêncio incômodo dos que preferem a conveniência da farsa à inquietude da verdade.
Artur, o mais contido, professor de literatura e leitor de Camus, sussurrou como quem lê uma dedicatória:
— A amizade deveria ser o território mais fértil para a liberdade de expressão. Mas é curioso como se torna, às vezes, a arena mais frágil para se dizer o que realmente importa.
Silêncio.
Porque Artur havia se calado anos atrás, ao perceber que Miguel estava perdidamente apaixonado por Clara — que namorava com Luísa. A linha entre a lealdade e a omissão, ali, se desenhava fina como navalha.
Há um certo romantismo em acreditar que o amor aceita tudo, perdoa tudo, compreende tudo. A realidade é mais sombria: muitas vezes o amor exige silêncio. Não o silêncio poético das mãos entrelaçadas, mas o silêncio da identidade sufocada.
Miguel lembrava-se, com incômodo, do tempo em que amou uma mulher que odiava sua escrita. “Você fala demais, escreve demais, questiona demais”, ela dizia. E ele calou. Parou de escrever. Tornou-se só advogado. Enterrou o poeta que existia nele para manter o amor — ou o que julgava ser amor. Descobriu, tarde, que o verdadeiro amor nunca exige a morte do que somos.
— Amar não é calar. É poder falar sem medo, disse ele agora, voltando à conversa.
Clara riu, cínica:
— Você nunca me disse que escrevia. Nunca mostrou um texto.
Ele se calou. Porque tinha medo. Medo de ser ridicularizado, de ouvir dela o mesmo que ouvira antes. Mesmo ali, entre amigos, o medo ainda falava mais alto que a liberdade.
Curiosamente, a amizade, que se vende como espaço seguro, pode tornar-se cárcere. Entre amigos, muitas vezes, nos sentimos obrigados a concordar. A proteger. A sorrir por obrigação. Quantas vezes deixamos de dizer verdades duras em nome da preservação de vínculos frágeis?
Luísa olhou em volta. Pensou em quantas vezes teve vontade de dizer a Artur que ele se escondia na erudição para não viver. Em quantas vezes quis confrontar Miguel por seus silêncios calculados. Em quantas vezes evitou dizer a Clara que sua suposta coragem escondia uma necessidade patológica de aprovação.
Mas não disse.
Porque a amizade, às vezes, exige mais diplomacia que a política.
E no entanto, a amizade verdadeira deveria ser o lugar do confronto seguro. Do abraço depois do grito. Do “você está errado” seguido de “e ainda te amo”. Mas a maioria das amizades não sobrevive ao espelho. Querem o eco, não o reflexo.
Vivemos tempos em que tudo ofende. Em que tudo pode ser cancelado, filmado, distorcido, repostado. Onde a liberdade de expressão se tornou um campo minado. Fala-se muito e escuta-se pouco. Confunde-se opinião com agressão, crítica com ataque, limite com censura.
Clara, sempre combativa, respirou fundo:
— A liberdade de expressão está morrendo nas mãos dos extremistas — de um lado, os que querem dizer tudo sem responsabilidade; do outro, os que querem punir qualquer fala que os desconforte.
Artur assentiu:
— A liberdade não é o direito de falar sem pensar. É o dever de pensar antes de falar. Mas é também o direito de errar e aprender. Sem isso, não há evolução. Só linchamento moral.
Miguel completou:
— E o amor e a amizade são os primeiros a sucumbir nesse cenário. Porque se não podemos ser autênticos com quem amamos ou confiamos… estamos todos em prisão domiciliar emocional.
O garçom trouxe a saideira. Os copos se ergueram. Naquele brinde havia mais que álcool. Havia a nostalgia do que já foram, a esperança do que ainda poderiam ser. Amigos, talvez. Amantes de si mesmos, talvez. Livres — se tivessem coragem.
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Luísa, que quase não falara, disse enfim:
— Talvez liberdade de expressão seja menos sobre o que dizemos e mais sobre o quanto os outros suportam escutar. E o quanto nós suportamos sermos ouvidos. A coragem não está em falar — mas em continuar ali, depois da fala.
Ninguém respondeu.
Mas todos ficaram.
E talvez isso seja o que salve o mundo: a permanência. Mesmo depois da verdade, mesmo depois do erro, mesmo depois do incômodo.
Porque no fim, amizade, amor e liberdade só fazem sentido se puderem coexistir na mesma mesa, entre um silêncio desconfortável e um brinde sincero.(Foto: Gemini)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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