
Sabe aquele profissional que você admira, mesmo depois de ele ter lhe jogado um cinzeiro? Pois é. Luiz Alberto Lessi(foto ao lado) é esse. Chefe de reportagem com quem tive o prazer de trabalhar no Jornal de Jundiaí (JJ) e no quase saudoso Jornal da Cidade (JC). Quando o conheci, eu ainda estava na gráfica, no departamento de past-up do JJ. Meu turno começava às 20 horas e o dele, já havia terminado. E lá estava ele, na Baronesa do Japi, esperando o irmão Welles para a carona — sempre sorridente e educado, com aquele “boa noite” que parecia ter endereço certo. Só o fato de ele ser repórter e assinar matérias na imprensa já me fazia admirá-lo. Quando me cumprimentava, era como se eu ganhasse o autógrafo de um astro do futebol.
Alguns meses depois, fui para a redação do JJ como diagramador. Lessi estava em clima de despedida, a caminho de Caraguatatuba. Além de jornalista, era graduado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC) e em Pedagogia, falava francês, arranhava um alemão respeitável — e, claro, era também diretor de escola. Se a memória não me trai, devo ter diagramado uma de suas matérias nessa fase.

Lessi foi para Caraguá, mas nunca perdeu o vínculo com os amigos da redação, especialmente Ivete Maria Aniquiárico e Mércio de Oliveira — dois profissionais que não estão mais entre nós. Quando ele decidiu voltar, foi recebido em festa. Eu continuava entre diagramação e textos, e lá vinha Luiz Lessi, como o bom filho que à casa torna, agora para assumir a chefia de reportagem. Generoso, enxergou em mim algum potencial — tanto na diagramação (modéstia à parte, eu fazia miséria com calculadora, régua de picas — ou “paicas”, para os íntimos — e diagrama), quanto na escrita.
Uma das primeiras exigências dele foi que eu fechasse a capa com ele. Na época, o JJ raramente estampava fotos verticais na primeira página — e fomos nós que começamos essa história. Até que um dia, um caminhão de combustível pegou fogo e explodiu na antiga marginal do Rio Jundiaí, em frente ao atual condomínio da Vulcabrás. O repórter policial Marco Antônio Sapia foi ao local, acompanhado do fotógrafo Aguinaldo Oliveira. Apesar da tragédia, ‘Guina’ fez registros jornalisticamente impecáveis — só que todos na horizontal.
Lessi entrava de manhã para fazer as pautas, ia dirigir sua escola e voltava por volta das 19h. Nesse horário, o jornal já estava quase todo fechado, só faltava a capa. Eu deixava tudo preparado: fotos selecionadas pelo laboratório, chamadas, diagrama, canetas e o inseparável lápis dermatográfico — uma espécie de bisturi artístico para marcar cortes de fotos (coisa de quem viveu antes do Photoshop).
Pois bem. Cismei que queria uma foto vertical na capa. Lessi olhou os fotogramas, decretou que seria horizontal. Fui ao laboratório, onde o fotógrafo Nilson Cologni estava, e pedi para ver os negativos na mesa de luz. E lá estava ela — a foto perfeita, que “dava corte”. Pedi, sorrateiramente, para Nilson ampliar também a imagem completa e me entregar depois. Voltei triunfante para a redação, anunciei a descoberta, e quando Luiz viu a foto, soltou seu clássico: “Bárbara!”. A capa ficou linda. Mais tarde, Nilson me trouxe a versão ampliada e guardei na gaveta.
Na noite seguinte, Lessi chegou, deu boa noite, colocou a bolsa na mesa, pegou o cinzeirinho (sim, naquela época fumava-se nas redações!) e perguntou:
— O que temos para a capa?
Peguei as duas versões da foto — a publicada e a original — e mostrei lado a lado. Ele olhou com aquele ar de quem estava entre o riso e o esganamento, depois disse apenas:
— Parabéns. Da próxima vez, exponha a sua ideia.
Ufa! Sobrevivi ao voo rasante do fechamento e, no dia seguinte, mais uma capa impecável.
Em outra noite, quinta-feira, edição quase concluída, estávamos eu, Lessi, Ivete e alguns resistentes da pauta. A conversa descambou para o tema “mulher sensual”. Cada um deu sua opinião, até que Luiz, com sua elegância de sempre, descreveu: “Blusa com belo decote, acinturada, saia bem cortada, meias finas e um belo salto alto”.
No dia seguinte à tarde, ouvimos um toc-toc-toc nas escadas. Olhei para a Ivete, ela olhou para mim e, em coro, dissemos:
— Nãooooo!
Sim. Era ela — a encarnação viva da descrição do Luiz na noite anterior. Um tal de ver quem ligava primeiro… E claro que consegui antes dela. Luiz não acreditou, mas era verdade. À noite, ele chegou à redação, pescoço rígido, dentes cerrados, e se sentou à minha frente. A moça atravessou a redação, puxou a cadeira ao lado dele e pediu um cigarro. Ele, impecável, acendeu, virou-se para mim e disse:
— Vamos fechar a capa.
E, com a majestade de quem domina o caos, seguiu trabalhando — ignorando completamente o destino que o universo lhe pregava.
Quando migramos para o Jornal da Cidade, Lessi foi o primeiro a ir, e depois levou Marco Sapia, Nilson Cologni, Marina Silva, eu e Mauro Sabonas. Ganhou até foto na primeira página, apresentado como o novo chefe de reportagem. Foi a era de ouro do JC — pautas afiadas, textos bem “canetados” e broncas… na medida certa.
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Até que, numa sexta-feira, o temido pescoção (edições de sábado e domingo) nos pegou de jeito. A redação era um pandemônio: barulho de telex (sim, jovens, antes da internet havia o telex!), gente da gráfica, do comercial, todos querendo mudar algo.

Lessi, tenso, canetava meu texto. Eu sentado à frente dele do lado direito, encostado na parede, Flávio Lima, da gráfica, encostado nela, insistindo em saber quantas páginas teríamos. De repente, o Luiz bradou:
— Édi! Eu já falei para não separar o sujeito do predicado!
E eu, sem filtro nem amor à vida, respondi:
— Sabe o que é, Luiz? Eles casaram, não deu certo… então eu resolvi separá-los.
Continuei olhando para a frente. Meu sexto sentido apitou — abaixei a tempo. O cinzeiro voou e acertou a parede atrás de mim. Flávio, coitado, desceu correndo para a gráfica. Eu, calado o resto da noite, aprendi a lição: desde então, não importa o quanto o sujeito e o predicado briguem… eu nunca mais os separei.

MIGUEL ÉDI GOMES
É jundiaiense, tem 54 anos. É formado em jornalismo pela UniFaccamp e atualmente faz parte da equipe da Assessoria de Imprensa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
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