Estava pensando e resolvi falar de minhas marcas. Sim aquelas que todos temos e nem sempre expomos ou comentamos, por razões altamente pessoais e, sempre, muito sigilosas. As minhas marcas já estão com prazo de validade beirando a proximidade, mas vejo-as com carinho (talvez por serem minhas) e respeito (por contar parte de meu trajeto), o que me leva a ter respeito pela menor delas.
Acredito que seja fácil trabalhar a ideia de trazer à baila as marcas físicas: mais fácil e mais objetivas, não menos doloridas. Trago vários, destas. Uma que que causou muito susto foi a marca que ganhei ao ralar o rosto no chão, no asfalto da Rua 14, em Rio Claro, quando cai e ralei bem perto dos olhos. Tanto a queda quanto o sangue foram algo bastante significativo, pois me possibilitaram sentir insegurança e medo. Ainda que seja uma discreta marca, está aqui para me possibilitar contar a tantos quanto entenda que mereçam ouvir.
Destas físicas, a marca que me sobrou, como uma sequela da operação de prótese total de quadril direito, é a mais aparente e desagradável: tenho um andar bem comprometido, não consigo mais correr, sinto dor, em algumas ocasiões. Sei que, um dia, terei que recorrer a outra cirurgia para prótese total e quadril esquerdo. Conheço minhas limitações e meus deslizes, bem como vivo bem dentro do meu caos, mas esta marca me quebra.
As vezes vejo alguns alunos ridicularizando e imitando meu andar, manquitolado, mas não me incomodo com isto, porque penso na idade deles e me lembro como eu era insuportável nessa faixa etária. Apenas me inquieto porque eu fora insuportável e inteligente enquanto que…deixa para lá. Segue o baile. Marcas físicas não me atormentam.
Minhas tatuagens me alegram: alguns param para saber delas. Perguntam o que significam, fazem caras de surpresa ou de alegria ao ouvir tudo o que penso destas quatro bem visíveis marcas. São artísticas, até, e em meu corpo estão representando aquilo que eu desejei representar. Desta forma, continuo na elaboração da quinta, que será feita em breve, somente expressando aquilo que eu quero que expresse, afinal é algo meu no meu corpo. E isso basta.
Mas as marcas não ficam por aí: ainda tenho as outras marcas. As marcas psicológicas e as marcas espirituais, que me acompanham e irão comigo até o final de minha passagem, são as coisas mais pessoais e íntimas que cada um de nós carrega consigo; minhas marcas psicológicas, além de tudo que trabalho em terapia, sempre transbordam para além de meu histórico pessoal, de modo a me permitir relações interpessoais que me completem e que me permitam associar-me àqueles que estão em meu contexto.
Trago a ansiedade como marca mais acentuada, mas não única. Alguns medos, algumas dependências povoam meu cérebro e ressoam nos meus comportamentos, de maneira que tenho minhas flutuações emocionais sem prejudicar ninguém e, tão pouco, sem criar dificuldades para ninguém que se aproxime de mim. Minha liderança e meu acolhimento não desviam minha atenção do foco que traço para seguir, nem se fixam em processos destrutivos nem de perseguição a ninguém. Gosto da vida em grupo, apesar da minha carreira pessoal ser solo. O grupo me traz alegrias pela diversidade dos membros.
Atualmente tenho caminhado mais nostálgico, mais saudoso e, de certa forma, até entendo: de repente passamos a perder os próximos mais próximos do nosso contexto e, isso sim, me assusta porque não tenho acordo com a Morte. Desta eu quero distância, mesmo sabendo que é inevitável. A perda de minha mãe e da Vitória Maria, minha irmã canina, foram perdas significativas de grande monta, suficiente para que eu ficar cada vez mais atento ao tempo. Esse Senhor de Tudo e Todos me ensina a aproveitar cada segundo do meu dia, como se tudo estivesse reunido ali. Então, vivo com uma intensidade infinita e insana, para não sentir, de forma alguma, a ideia de que deixei o tempo passar e não me preocupei com ele. Jamais isso acontecerá.
E as marcas espirituais? Ah, estas são mais internas ainda e mais enigmáticas, porque dependem da Fé, proposta inexplicável e de difícil mensuração. A Fé é diferente da religiosidade. Nesta podemos demonstrar nossa Vida na vivência religiosa de cada segmento, enquanto naquela só podemos sentir; será por nossa sensação que transformaremos nossas atitudes e hábitos, de modo que pessoas com Fé tendam a ter bons exemplos e boas atitudes, por encontrarem nas ações e demais pessoas o elemento de reciprocidade e empatia existente nos que creem. É de difícil explicação como é, também, de difícil compreensão, as vezes até por aquele que a sente. Não são raros os momentos em que nos pegamos perguntando a nós mesmos sobre a origem da nossa Fé e o quanto temos de Fé para superar esta ou aquela situação que nos está sendo proposta pela Vida.
No mundo da Ciência, onde trabalho e por onde fui formado, a Fé é algo pouco reconhecido e discutido, chega até a ser desconsiderada; com o avanço da Neurociência passamos a dar uma atenção maior à Fé, por meio de estudos e pesquisas aplicadas, em que se constata o valor da Fé em situações de cura ou recuperação de propostas pós-traumáticas. Já temos um imenso número de bons estudos que apontam nesta direção, com bastante elucidação e assertividade na causa.
As minhas marcas espirituais…bem, estas são questões que que não me poupo em vive-las, em especial porque Fé é Vida e eu sou abusado. Creio absurdamente, em toda proporção que me é cabível; quando me propus a fazer o “Caminho de Santiago”, o caminho longo, sabia o que me esperava, mas sabia mais ainda o que eu poderia oferecer. E fiz causando espanto em minha própria mãe, que não achava razoável a minha intenção.
As cartas que recebi, depois da partida dela, entregues por um casal de professores da Unicamp, em meu portão, agitaram-me e inquietaram-me, em especial por estar avançando num terreno desconhecido, até então, e no campo do crível, mas não provável. Somente o fato de poder ser acreditado pela assinatura que era semelhante e pelos termos que somente nós usávamos, na intimidade de casa, já me era assustador e encorajador, ao mesmo tempo.
Esta dicotomia é algo que a ciência não explica. Mas a Fé aceita e eu tenho Fé. Meus caminhos, pela Vida, estão sempre permeados de questões que fogem do concreto, mas de certa forma, nunca me impossibilitaram de seguir feliz os meus sonhos; atualmente, bem mais velho e maduro (porque ser mais velho não assegura ser maduro!!!) consigo notar sinais de que sempre estive envolto nesse campo poroso e, ao mesmo tempo, forte da Fé.
Nunca fui daqueles que têm dons extrassensoriais, como vi em algumas Renovações Cristãs que participei. Lembro de duas colegas que, numa noite de vigília na capela de nosso local de renovação, viram Cristo descer da cruz (imaginem, eu, com 15 anos, ouvindo uma coisa dessas e não vendo nada!!!) o que me fez procurar o Bispo, na época, Dom Gabriel Paulino Couto e contar. Eu estava alucinado com o fato. Até que soube que a alucinação não era a minha, eu estava com meus pés bem assentados, bem aterrados. Nunca fui fantasioso.
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Mas tenho, sim minhas marcas profundas de espiritualidade. Cultivo-as com carinho e quero entrega-las maiores e melhores, em minha partida. Acredito nesta evolução e sei que o Tempo se encarregará de me tornar uma pessoa melhor a medida que eu me permitir ser diferente e ser mais disponível para aquilo que se me apresenta como fundamental para minha Vida.
Aliás, acredito no poder transformador do Tempo…ainda que demore, ainda que doa, ainda que pareça impossível, ele sempre encontra uma forma de mostrar sua força e sua sabedoria. Em especial quando olhamos para cada uma de nossas marcas, afinal, quem não as tem? Sou tão marcado, por dentro e por fora, que me sinto uma colcha de retalhos, mas o Tempo tece com sabedoria e misericórdia cada um dos pedaços que me compõem. Ah, se não fosse o Tempo...(Foto: Andrew Peterson/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do Lepespe, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da Unesp. Mestre e Doutor pela Unicamp, livre docente em Psicologia do Esporte, pela Unesp, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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