O “coração da capital”, o marco zero, a Praça da Sé, está com visual impressionante há algum tempo. A velha praça cosmopolita, que passou por remodelações, ganhou estação metroviária, assistiu manifestações, inspirou poetas burgueses, rappers e inúmeros migrantes que lá chegaram na esperança de mudança para melhor na vida, hoje parece um acampamento de refugiados. Refugiados de que, de onde?
Para entender todo o processo é necessário ter uma visão de alcance nacional, apartidária e sem bairrismos. A Sé, mais que coração, sempre foi a mãe. Aquela que acolhe e ouve os problemas de todos os seus na família. Para lá se dirigiam as senhoras, de famílias tradicionais, para as missas na Catedral. Chegavam a pé ou em automóveis aos domingos nas manhãs dos anos 60, 70, quando a praça estava sem o burburinho do vaivém de comerciantes, consumidores, homens de negócios, vestidos com terno e gravata, portando suas maletas, que atravessavam rapidamente o local, ou até parando uns minutinhos para observar a criatividade dos recém-chegados migrantes que, ainda sem moradia, ou morando nas favelas e cortiços, produziam seus artesanatos ou inventavam geringonças com alguma utilidade para vender e suprir suas necessidades diárias, e não serem presos por vadiagem enquanto estavam desempregados.
Aquela São Paulo conservadora em hábitos já tinha na Praça da Sé o abrigo, fazendo jus ao coração de mãe. Era o coração de Dom Paulo Evaristo Arns, que com sua preocupação aos pobres, já era visto como “comunista”, rótulo que continua perdurando na visão daqueles das correntes conservadoras. Pastoral, crianças, idosos… ao mesmo tempo que avançava o trabalho social, novos problemas surgiam, daí a necessidade de ter uma visão de alcance nacional, como citei linhas atrás. Presidentes de linha dura como Stroessner, Pinochet e outros – inclusive no Brasil – tiveram seus pontos finais. Democracias restabelecidas, o país de dimensão continental se perdeu no processo de ajustes sociais. Os avanços na qualidade de vida, oportunidades e ascensão social foram pequenos e muito maquiados. Corrupção crescente, assistencialismo, populismo e demagogia na política acentuaram as divisões, inviabilizando um trabalho-padrão para a educação e formação profissional nas camadas sociais menos favorecidas, que poderia ser feito junto às entidades religiosas sem barganha política – importante isto, sem comprometimentos partidários/ideológicos, que é algo que se presencia hoje.
Com as divisões, a falta de apoio estrutural, incluindo aí o financeiro, o trabalho social sério não teve força para enfrentar o inimigo que chegava para dominar a parcela fragilizada da população – a droga. Destaquei o trabalho social sério, porque também surgiram entidades oportunistas nos últimos trinta anos, aquelas que enriqueceram seus presidentes ostentando a fachada de caridade e inclusão social. As ONGs picaretas, que vieram também no embalo de inúmeras placas novas de “igrejas”.
A Torre de Babel estava formada na década de 80. A Praça da Sé foi revitalizada, ostentava suas belas fontes, onde crianças em situação de rua se divertiam, mergulhando, nadando nas piscinas da praça. Era o sinal do que estava por vir. O coração paulistano que assistiu pobres e aleijados (sim, eram chamados assim naquela época) tentando vender suas invenções, começava a receber negociantes, marreteiros e informais organizados por grupos paralelos, aqueles que surgiram na ausência das políticas públicas técnicas, com planejamento consistente e honesto. Os engraxates foram sumindo, afinal, hábitos estavam mudando, não só na maneira de se vestir, mas na maneira de viver na metrópole. A “cultura shopping” tirou as famílias das praças. As camadas A, B e C se encantaram com o confinamento, as quatro paredes, na ilusão de segurança, afinal, naquele início a novidade garantia selecionamento de consumidores. Pessoas “suspeitas” devido à forma que se trajavam eram sutilmente convidadas a se retirar desses templos do consumo; quando não, eram literalmente enxotadas. Com a camada social exigente e com peso da opinião crítica universitária agora distante das praças centrais, estas regiões entraram em decadência. Não por se tornarem populares em si, mas pela própria máquina política, composta essencialmente – naquele período – por figuras que vieram da nata da sociedade e se preocupavam prioritariamente com a força vinda daqueles de seus nichos, a camada que agora se encantava com os templos de consumo seletivos. E assim floresceram os nichos seletos, região de Pinheiros, Vila Olímpia, Vila Madalena e outros, ficando a Sé e entorno, sem as grandes lojas, sem os cinemas, para aqueles que continuavam a chegar em busca de um novo eldorado urbano. Buscar emprego era na Sé. Buscar “atração” era na Sé. Tudo era a Sé. Um ex-prefeito resolveu, lá no fim dos anos 80, “dar um banho” na Praça da Sé. Todo mês, um caminhão lavava, literalmente, a praça. Não que não fosse necessário, é até um luxo no conceito saúde pública. Mas o centro de São Paulo não precisava de maquiagem populista. Precisava de cabeças inteligentes e sensatas na elaboração do plano diretor. Precisava correr nas políticas públicas, no lado social, sem assistencialismo barato. Sem o oportunismo do populismo travestido de bom-samaritano. Era preciso ouvir o lado humano junto à espiritualidade sem tomar partido de placas de igrejas e rótulos de legendas políticas. Mas aconteceu exatamente o contrário. E a Sé caminhou para o que é hoje.
As águas não jorram como nos anos 80, para não servirem de chuveiro aos mendigos. Mas de alguma forma há banho e lavagem de roupa, que depois ficam expostas ao sol, mesmo sem varais. Sim, a Sé que tanto acolheu agora é moradia de muitos. Com ligeiras diferenças. Todos são pobres, mas antes eram saudáveis, mesmo com suas deficiências físicas e até doenças, tinham aptidões e criatividade à flor da pele. Como víamos nos anos 60 e 70, mente sã. Injustiçados por um sistema seletivo, preconceituoso. Mas pedras preciosas que faltavam apenas lapidação. Agora temos pedras de crack que impedem qualquer tentativa de lapidação em homens e mulheres. Porque muitas mentes já não são mais sãs. Já haviam se perdido antes da chegada do crack. Haviam se perdido no pó, na bebida e nas pseudoassistências surgidas junto a um poder paralelo, das máfias urbanas que cresceram junto à citada falta de capacidade técnica nos projetos sociais das políticas públicas. Algo que pensávamos que não ocorreria com a “deselitização” dentro do nicho político, com a entrada de figuras do povo, de todas as camadas sociais. Puro engano, muitos destes passaram a ser marionetes dos velhos políticos da elite, criando um jogo de interesses entre a nata da sociedade e o cinturão popular, que passou a receber injeções de consumismo no lugar de injeção de educação e autonomia. A Praça da Sé hoje é o espelho do Brasil, um pouco dela há em todo o interior paulista e outros estados. Por ali passam pessoas da periferia, da classe D, ostentando tênis de marca ou montadas em motos e carros. A classe D, que entende a vida da classe E que ali mora, sem eira nem beira, mas entende que a situação não é de sua responsabilidade. Da mesma forma, as demais classes, C, B e até a A que porventura passe ali, dirá que não é de sua alçada aquela situação. “Algo aconteceu”. E atingiu a todos, mas ninguém assume. A realidade da Sé, que já tinha braços em Campos Elíseos desde a instalação da antiga rodoviária da Luz, se expandiu, atingiu até Santa Cecília, tradicional bairro de classe B e C. A “cracolândia” do Campos Elíseos é, de certa forma, itinerante. Caminha em torno do coração da grande mãe. E envia uns e outros para os pontos periféricos e outros corpos urbanos. Metropolitanos e interioranos. Jundiaí “ganhou” sua cracolândia há anos, alguém lembra em qual ano foi? Ali tem jundiaienses, paulistanos, paulistas, migrantes… poucos sabem quem é quem ali, de onde veio, sua história. Jundiaienses inconformados não querem saber de estender muito o assunto, dizem “vieram de algum lugar”. E deveriam estar em algum lugar. Onde? O coração da mãe Sé está abarrotado. Não cabe mais ninguém. Ali os olhares são perdidos, sem direção, sem um norte. O tempo passa lento para eles, sem respostas, sem garantia de um futuro diferente. Enquanto isso, políticos estão preocupados com 2022. Com obras, como sempre, eleitoreiras, que causam impacto, como extensão de metrô, duplicação de rodovias, liberação de áreas para o setor imobiliário para as camadas A e B (sim, elas continuam com peso na opinião crítica). Não que estes setores não sejam importantes, principalmente o de mobilidade, transporte é muito necessário. Mas são obras que não exigem lidar com o aspecto mais complexo do ser humano, que é sua formação, educação. Para as obras que aí temos sempre, anunciadas pelos governantes, basta recrutar. Bastam as reuniões, licitações, jogos com os quais políticos são habilidosos. Diferente das políticas sociais, que envolvem raízes culturais históricas e necessitam, inevitavelmente, dialogar com governos de outros municípios, outros estados e governo federal, afinal, o problema é itinerante e foi aparelhado nas últimas décadas pelos cérebros do narcotráfico, que hoje não estão nas periferias e sim nos condomínios. Nas periferias e cracolândias estão somente os “soldados”.
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A nova Praça da Sé está adoecida, bem mais que nas três últimas décadas. Porque foi remediada por anos com medicações de efeitos temporários. Remédios experimentais, mal produzidos. E esse coração continua à base de medicações ineficazes enquanto demais partes do corpo recebem vestimentas para impressionar os visitantes. O Vale do Anhangabaú foi um deles. Veremos o que será do corpo São Paulo enquanto o coração não receber o tratamento devido. Não adianta ir com esguichos, desmontar barracas, expulsar seus moradores. Dar aparência ao coração, como foi feito no Vale, não traz saúde. O tratamento dependerá, primeiramente, de mudança na forma de gerir cidade, estado e país. Pergunto: essa mudança acontecerá?(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
GEORGE ANDRÉ SAVY
Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.
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