A gente cresceu numa pobreza criativa, fazendo de tudo para colorir a vida, que por vezes tinha tons exagerados de cinza. Éramos seis. Eu e cinco primos, que morávamos em casas do mesmo quintal.
Andar de carro era um acontecimento que nos alegrava mais que ganhar doces, e quando as duas coisas vinham no mesmo pacote então… era alegria pro resto do ano.
A gente tinha uma vizinha batuta, a dona Maria, dona da casa mais bonita da rua. Era evangélica, e nós…. bem… nós tentávamos ser católicos, fizemos primeira comunhão e tudo, mas de vez em quando apareciam em casa uns amigos umbandistas e nós adorávamos a batucada e os trabalhos que varavam noites.
Mas para andar de carro valia tudo e a dona Maria, na vã esperança de nossa conversão, nos levava, eu, duas primas e um primo, os quatro entre nove e 12 anos, quase todos os domingos, para o culto das sete da noite.
Passeio longo… a igreja era longe e íamos radiantes no Passat azul do seu Jairo, marido da dona Maria.
Era tudo muito alegre. Ficávamos numa salinha, onde a evangelizadora contava bonitas histórias, enquanto distribuía doces e sucos.
Ainda me lembro dos hinos. O meu favorito era o que contava a história do Rei Davi derrotando o gigante Golias.
Pois bem… deu-se que num desses domingos, o culto foi um pouco diferente. Nós, crianças, ficamos no salão principal com os adultos, havia mais pessoas do que o normal e teria sido cansativo, se não tivesse sido tão intrigante.
Enquanto o pastor pregava, missionários, pouco a frente do altar, oravam em pé, com as mãos estendidas sobre as cabeças de pessoas que se aproximavam em filas. Algumas dessas pessoas, recebendo a oração, caiam como num transe, sendo amparadas por outros missionários.
Sentados, vislumbrávamos aquelas cenas com curiosidade e pavor, até que alguém nos puxou pela mão e quando percebemos, estávamos na fila para o transe.
Esticávamos os pés, espichávamos o pescoço e arregalávamos os olhos na tentativa de entender porque aquelas pessoas caiam. Com medo, comentávamos aos cochichos algum palpite, até que ouvimos de alguém: “que bom que fulano caiu, sinal que a coisa ruim que estava com ele saiu”.
Pronto… seguimos na fila na obrigação de cair também, afinal criança era tudo endiabrada, como diziam alguns adultos.
– Mas e se a gente não cair? Comentei com os primos. E seguimos discutindo:
– Ah… a gente cai… todo mundo tá caindo.
– Todo mundo não, eu vi o Tião carreteiro de pé depois que a mulher orou nele.
– Diz que o Tião é ruim demais.
– Então acho que quem é ruim não cai.
– Será? Vamos ver se a Elisabete cai… ela é boazinha… se ela cair a gente cai também.
(A Elisabete caiu)
– Eu decidi! Vou cair… e se eu não cair eu me jogo pra trás pra fazer de conta que cai.
– Nós também… Concordaram os três.
– Cuidado pra não bater a cabeça, segura o pescoço bem firme. Sugeriu a mais preocupada.
A fila encurtava e a ansiedade aumentava.
Faltando pouco para chegar nossa vez, combinamos que quem caísse ou se jogasse primeiro, seguraria na roupa do outro para ajudar, puxando para a queda.
A primeira a cair fui eu. Na sensação de um nada absoluto, determinada a me livrar, ainda que ilusoriamente de qualquer coisa ruim que pudesse me acompanhar, me joguei para trás com a oração da missionária fervilhando meus neurônios. Num frenesi de fingimento com libertação, encenei uma queda apoteótica, um drama mexicano, com direito a espanto verbalizado em dó menor, num coro que reuniu toda a igreja num só rebanho de indignados.
– Ohhhhhhhh!!!
OUTROS TEXTOS DE ROSITA VERAS
SANTO PADROEIRO. E CASAMENTEIRO…
É que não era comum criança cair e quando o pastor se aproximou preocupado, enquanto as pessoas comentavam o que estaria acontecendo de tão grave comigo, três vozes fininhas ecoaram gargalhando:
– Ela só tá fingindo… não tem nada de ruim com ela.
E eu permaneci no fictício transe, envergonhada, imaginando uma solução para levantar… sem coragem de abrir os olhos.
Esperei alguns instantes e espiei com os olhos semicerrados… dei com a cara a do pastor quase colada na minha, como se tentando me ouvir respirar.
Ele arregalou os olhos, franziu a testa e afastou-se resmungando:
– Com criança nem o diabo pode…(Foto: blogclaraboia.blogspot.com)

ROSITA VERAS
É escritora, ghostwriter e articulista. Rositaveras.blogspot.com
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