Há filmes que são como portas entreabertas: você não sabe exatamente o que vai encontrar ao empurrá-las, mas algo dentro de você o impulsiona a seguir. O Quarto ao Lado, de Pedro Almodóvar, é exatamente assim: uma história contada com a delicadeza das entrelinhas, onde o que não é dito pesa tanto quanto o que é.
Almodóvar sempre teve o dom de mergulhar nos abismos da alma humana, mas aqui ele parece se aproximar ainda mais do silêncio das grandes dores. O filme, com seus quartos separados apenas por uma parede fina, fala sobre a vida de três mulheres: as jornalistas Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton, sempre magnética) e a filha de Martha, uma jovem cheia de ausências.
O quarto ao lado não é apenas um cômodo físico: é uma metáfora viva para as distâncias emocionais que nos separam, às vezes irremediavelmente, de quem mais amamos. É sobre querer atravessar a parede, tocar o outro, dizer aquilo que nunca dissemos — mas nem sempre conseguimos.
Enquanto assistia, me peguei pensando em quantas vezes, na vida, moramos emocionalmente “no quarto ao lado” de alguém. Quantas palavras não faladas, quantos abraços adiados, quantas reconciliações que poderiam ter sido… se tivéssemos coragem de atravessar a parede fina — essa parede que é feita menos de tijolos e mais de medo, orgulho, dor.
Almodóvar, com sua estética vibrante e sua emoção contida, mostra que o amor não é perfeito, nem sempre é suficiente, mas ainda assim é tudo o que temos. O filme caminha com passos leves sobre temas pesados: maternidade, culpa, perdão. E o faz com a maturidade de quem já entendeu que nem toda história precisa ser consertada — algumas precisam apenas ser sentidas.
Em certo momento do filme, o som que atravessa a parede fina — passos, choros abafados, respirações contidas — diz mais do que qualquer diálogo poderia dizer. É assim também com a vida: às vezes, é no que não conseguimos expressar que mora a verdadeira intensidade do nosso amor.
Saí da sessão com uma vontade imensa de ligar para algumas pessoas. Não para dizer grandes coisas, mas para lembrar que estou aqui, no quarto ao lado, ouvindo, sentindo, mesmo que as paredes do cotidiano, das escolhas, dos desencontros tenham se colocado entre nós.
Pedro Almodóvar mais uma vez nos presenteia com aquilo que é raro no cinema e na vida: a delicadeza de olhar para o outro com verdadeira compaixão. Sem julgamentos, sem ilusões. Apenas reconhecendo que, por trás de cada porta fechada, há alguém tentando, à sua maneira, ser amado, ser perdoado, ser visto.
O filme é um lembrete de que a vida acontece nesse intervalo frágil entre o que dizemos e o que deixamos em silêncio. E que, às vezes, o maior ato de amor que podemos oferecer é simplesmente estar — mesmo que separados por uma parede — atentos, vivos, disponíveis para quando o outro, enfim, tiver força para abrir a porta.
Quando se olha O Quarto ao Lado sob uma lente crítica, percebe-se que Almodóvar faz mais do que narrar uma história: ele propõe uma reflexão formal e estética sobre a natureza dos vínculos humanos. Sua escolha por cenários fechados, cores saturadas e enquadramentos que fragmentam os personagens reforça a ideia de enclausuramento emocional. Não estamos diante de uma simples metáfora visual: estamos diante de uma construção estética que reproduz fisicamente a condição interna dos personagens. Cada parede, cada moldura de porta, cada plano de janela aberta ou entreaberta carrega o peso simbólico do que é dito sem palavras.
Tilda Swinton, com sua contenção precisa e sua presença hipnótica, dá vida a uma personagem profundamente marcada por ausências — não só físicas, mas afetivas. Sua atuação, delicadamente sutil, é uma dança constante entre o desejo de se reconectar e o medo de reviver velhas feridas. É também uma crítica indireta às imagens de heroísmo feminino frequentemente cristalizadas pela mídia: sua correspondente de guerra é forte, mas também vulnerável; é admirada, mas também profundamente solitária.
Almodóvar, como em seus melhores momentos (Fale com Ela, A Pele que Habito, Dor e Glória), parece insistir que a comunicação verdadeira é quase sempre imperfeita — e que mesmo assim vale a pena tentar. Seus personagens não buscam redenções espetaculares. Eles buscam migalhas de reconexão, resquícios de entendimento, pequenas faíscas de perdão.
A direção de arte é outro elemento crítico que merece atenção: o filme evita a grandiosidade visual gratuita. Tudo serve à intimidade da narrativa. A paleta de cores, ainda que viva, é domada pela sobriedade da história. A luz é usada como partícula dramática: entre o claro e o escuro, entre os brilhos passageiros e as penumbras persistentes.
Em termos de linguagem cinematográfica, O Quarto ao Lado é um exercício de contenção. Poucos diálogos, planos médios, cortes lentos. Tudo convida o espectador a mergulhar na interioridade dos personagens — uma aposta arriscada em tempos de cinema cada vez mais imediato e barulhento. E, justamente por isso, um filme necessário.
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No fim, Almodóvar reafirma sua tese central: somos seres inevitavelmente separados, mas a beleza da existência está em tentarmos atravessar, ainda assim, as paredes que nos dividem. Mesmo que fracassemos. Mesmo que o outro nunca abra a porta. É na tentativa — e não na garantia — que reside o ato mais humano.
Assim, O Quarto ao Lado não é apenas mais um filme sobre mães e filhas, sobre amor e perda. É, sobretudo, um filme sobre o desejo silencioso de ser ouvido, de ser tocado, de ser compreendido, ainda que através das paredes finas e invisíveis que todos carregamos dentro de nós.(Foto: cena do filme ‘O Quarto ao Lado’/Divulgação)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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