TEMPO MODERNO: Conexões e desconexões

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Na sala de estar de um apartamento iluminado por luzes artificiais e telas de LED, uma família janta em silêncio. Cada um diante de seu próprio universo digital: o pai responde a e-mails no celular. A mãe percorre um feed infinito de redes sociais, e os filhos, absorvidos por vídeos curtos, mal notam a presença física uns dos outros. Estão juntos, mas desligados. Unidos por laços de sangue, mas separados por um tecido invisível: o tempo moderno.

A modernidade, tão celebrada em sua velocidade, inovação e conectividade, nos trouxe uma vida mais prática e imediata. Porém, ao mesmo tempo, fez do humano algo quase efêmero. As relações — que antes se costuravam com o fio da convivência e da escuta — tornaram-se fugazes, superficiais, descartáveis. Em nome da liberdade e da autonomia, trocamos a permanência pelo passageiro, o diálogo pelo emoji, a profundidade pelo toque da tela.

Vivemos um tempo líquido, como diria Zygmunt Bauman. Nada se solidifica: nem os amores, nem as amizades, nem os compromissos. Tudo é adaptável, flexível, como se o mundo fosse um grande aplicativo em que se desliza para o lado aquilo que já não entretém. E, no entanto, continuamos famintos. Famintos de presença verdadeira, de pertencimento, de sentido. A abundância de opções não supriu a carência de vínculos reais.

Nesse cenário, a família — outrora berço e refúgio — vê-se ameaçada por essa lógica da velocidade. Os almoços de domingo tornaram-se exceção, os aniversários presenciais, quase cerimônia. Substituímos o cheiro do bolo assando pelo som da notificação no WhatsApp. A rotina familiar, que outrora estruturava afetos, foi dissolvida pela correria cotidiana. O tempo de escutar o outro foi vencido pelo tempo de “resolver pendências”.

Mas a família resiste apesar deste tempo de desconexão. Ainda que enfraquecida, é ela que nos ancora quando tudo parece colapsar. Em meio à fugacidade das relações modernas, a família é o ponto de retorno. Mesmo quando silenciada, mesmo quando desacreditada, carrega a semente da permanência. Ainda somos frutos de olhares, de histórias entrelaçadas, de afetos herdados. Aquele abraço da avó, a sabedoria silenciosa do avô, o aconchego da mãe, a cumplicidade dos irmãos — esses gestos, por vezes esquecidos, são trincheiras contra a banalização do humano.

E há algo mais que resiste: a espiritualidade. Não necessariamente atrelada a uma religião, mas como busca de transcendência, de algo que vá além da tela, do toque, da transação. A espiritualidade nos convida a silenciar, a olhar para dentro, a lembrar que somos mais que consumidores, mais que perfis digitais, mais que nossos currículos. É ela que nos relembra que o tempo não se mede apenas em produtividade, mas também em eternidade — nas coisas que perduram: a gentileza, o perdão, a presença.

Enquanto a modernidade tenta reduzir o humano a algoritmos, a espiritualidade nos devolve a inteireza. Em um mundo que nos fraciona em dados e preferências de consumo, ela nos devolve a dimensão do sagrado, da comunhão, da escuta do invisível. Quando tudo parece ruir, quando o mundo pesa e as relações se esvaem, é na espiritualidade que muitos encontram chão — ou céu.

A cultura, por sua vez, ocupa um lugar ambíguo. Se por um lado foi afetada pela lógica do consumo rápido — com músicas descartáveis, leituras rasas e modismos —, por outro lado também tem sido uma forma de resistência. Um poema pode ser farol. Um filme pode ser espelho. Um livro pode ser companhia. A arte nos humaniza quando tudo ao redor tenta nos automatizar. A cultura é memória viva: reconecta-nos à nossa ancestralidade, às nossas lutas, às nossas alegrias partilhadas. Ela é o fio que costura identidade em tempos de desidentificação.

Em uma sociedade que valoriza mais o ter do que o ser, mais o parecer do que o pertencer, a cultura pode nos lembrar de quem somos. Ela registra nossas histórias e nos ensina que não estamos sós, que somos parte de algo maior: um povo, uma época, uma narrativa. Cultivar a cultura é, portanto, uma forma de cuidar da alma coletiva.

Diante de tudo isso, cabe uma pausa. Não para renegar os avanços da modernidade, que também nos proporcionaram conquistas valiosas, mas para reavaliar o que estamos deixando para trás. A pressa não pode continuar sendo inimiga da presença. A eficiência não pode anular o afeto. A liberdade não pode ser confundida com indiferença.

Voltar à família, redescobrir a espiritualidade, valorizar a cultura — eis três caminhos possíveis para resistir à fugacidade das relações e reencantar a vida. Talvez seja o momento de resgatar a lentidão como valor. De reaprender a olhar nos olhos. De ouvir com o coração. De lembrar que, no fim, são os laços que nos sustentam.

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Não será a tecnologia que nos salvará da solidão, mas sim os afetos. Não serão os dados que nos farão melhores, mas sim a empatia. Não será o algoritmo que nos dirá quem somos, mas sim o espelho do outro, o gesto do amor, a partilha da existência.

Quem sabe, então, seja hora de desligar um pouco as notificações e atender às verdadeiras chamadas da vida: um abraço demorado, uma conversa à beira da tarde, um olhar que compreende, um silêncio que acolhe. Porque, apesar de tudo, ainda é possível ser inteiro num mundo fragmentado.(Ilustração: Quadro “A Persistência da Memória”, Salvador Dali)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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