Não é de hoje que as novelas são um tesouro nacional. Neste tipo de dramaturgia, muitos temas sensíveis ou controversos em nossa cultura surgem nas tramas, nos provocando a pensar, refletir e nos posicionar. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e produzida pela TV Globo em 1993, Renascer foi um grande sucesso de audiência. Em janeiro passado, sua regravação voltou às telas.
No roteiro de Renascer, duas situações principais desafiam nossas crenças e valores. A primeira envolve um triângulo amoroso e incestuoso entre o poderoso dono das terras de produção de cacau, José Inocêncio, a neta de um antigo desafeto, Mariana, e João Pedro, filho caçula do patriarca. Apesar de João Pedro estar apaixonado por Mariana, quem se casa com ela é seu pai.
Este conteúdo foi suficiente para que a talentosa Adriana Esteves, atriz que representou Mariana, sofresse um linchamento social. Trata-se de um clichê, quando ficamos com raiva da atriz pelos comportamentos da personagem. A atriz foi muito hostilizada na época, mesmo sem redes sociais. O impacto psíquico foi tão violento, que ela saiu da cena televisiva e precisou cuidar de uma depressão.
A segunda situação, que igualmente tencionou os padrões culturais, foi a personagem Buba(foto), que vivia um romance com outro filho de José Inocêncio, José Venâncio. Buba mantinha um segredo: era uma pessoa intersexo. Foi a primeira vez na televisão brasileira que uma pessoa intersexo era representada na trama. De lá para cá, nunca mais ocorreu.
Apesar de permanecer inalterada a disputa entre um pai, seu filho e uma amante em comum, na versão atual a personagem Buba não é mais uma pessoa intersexo, e sim uma mulher trans. O ponto positivo é a atriz que representa Buba, a jovem Gabriela Medeiros. Ambas, personagem e atriz, são mulheres trans. O ponto negativo é que se perde a chance de recolocar na pauta as vivências de pessoas intersexo. Então vou fazer a minha parte, com alguns apontamentos.
Não se usa mais, para seres humanos, o termo hermafrodita. Ficou pejorativo, antiquado e preconceituoso. Pessoas intersexo revelam muitas experiências traumáticas, o que é muito cruel. As violências podem começar na infância, com cirurgias estéticas compulsórias, estimuladas por equipes médicas despreparadas e coadunadas com pais sem orientação qualificada sobre esta condição.
A pornografia, na era a internet, ajudou a disseminar estereótipos de pessoas com órgãos genitais feminino e masculino, apesar de ser apenas uma entre as mais de 50 condições intersexo atualmente conhecidas e estudadas. Na verdade, trata-se de um espectro.
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Intersexo é a pessoa que nasceu com alguma ambiguidade, seja genital, gonadal, cromossômica, hormonal ou outras, resultado das “Diferenças no Desenvolvimento do Sexo” (DDS) que ocorrem, sobretudo, na gestação. Trata-se de uma condição genética e hereditária, absolutamente compatível com a vida e presente em cerca de 1,7% da população. É tão frequente quanto pessoas com cabelos ruivos.
Claro que a discussão em torno da visibilidade das pessoas transexuais e travestis continua urgente, e acontece em diversos espaços. Entretanto, o autor Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, escolheu não manter Buba como uma pessoa intersexo nesta regravação. Pareceu-me uma tremenda falta de cuidado e uma perda preciosa de oportunidade: Buba poderia ser trans e intersexo. Produção da novela Renascer: ainda dá tempo!(Foto: Divulgação)
MARCELO LIMÃO
Sociólogo, psicólogo clínico, especialista em “Adolescência” (Unifesp) e “Saúde mental no trabalho” (IPq-USP). Colaborador no “Espaço Transcender – Programa de Atenção à Infância, Adolescência e Diversidade de Gênero”, da Faculdade de Medicina da USP. Instagram: @marcelo.limao/Whatsapp: (11) 99996-7042
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