Em meados julho de 1961, quando eu era chefe de reportagem do jornal “Última Hora” de São Paulo, recebi um telefonema do ex-prefeito paulistano Wladimir de Toledo Piza, de cujo gabinete eu havia sido assessor de Comunicação, convidando-me para um cafezinho em sua casa, à rua Otoniel Mota, 45, Jardim Paulistano.

Fechada a edição vespertina, fui para lá, onde tive a surpresa de conhecer o então coronel Euryale de Jesus Zerbini, que me foi apresentado pelo Dr. Piza como Chefe do S2 (Serviço Secreto do II Exército) e integrante do Movimento Militar Nacionalista (MMN), liderado pelos generais Estilac Leal e Miguel Costa, entidade que desde os tempos do presidente Getúlio Vargas  congregava principalmente sargentos em defesa do monopólio estatal do petróleo e outras iniciativas nacionalistas.

Mal servido o cafezinho, o Dr. Piza me diz:

─ Como o Zerbini tem pressa, vamos direto ao assunto: o Jânio cai no próximo dia 19 de agosto. Ele tem preparado um plano de golpe, com fechamento do Congresso e suspensão das garantias constitucionais por 15 anos, a exemplo do plano atribuído ao general De Gaulle. Para isso, ele conta com o apoio dos três ministros militares (Denys, Grum Moss e Sílvio Heck) e de vários governadores (Carvalho Pinto, Leonel Brizola e outros). Mas o MMN tem tudo pronto para o plano ser denunciado e desarticulado e o Jânio cair. Faça reserva desta informação, mas consideramos que devíamos comunicar-lhe, a fim de que o jornal esteja atento aos acontecimentos dessa ocasião em Brasília e saiba que o MMN terá pleno controle da situação.

Em vista da amizade e confiança que eu tinha no editor-chefe do jornal, Múcio Borges Fonseca, confidenciei-lhe essa informação e a fonte da mesma. Dias depois, em outro cafezinho em sua casa (presente, mais uma vez, o coronel Zerbini), o Dr. Piza disse-me que ocorrera uma mudança no plano de JQ e a data do “golpe gaulista”  ficara para o 25 de agosto, Dia do Soldado, a partir de uma Ordem do Dia conjunta dos três ministros militares, a ser lida pelo general Denys, em solenidade militar na praça do Três Poderes.
No dia 25, aí pelas 11 horas, estávamos ultimando a edição vespertina do UH, quando o Múcio vem à minha mesa e interpela:

─ E o Jânio, Jayme?

Respondi que ia perguntar ao Dr. Piza, a quem telefonei imediatamente. Como o Dr. Piza era médico, tivemos o seguinte diálogo:

─ Dr. Piza, como vai o doente?

Ele foi peremptório:

─ É caso de câncer incurável. Morre hoje, sem apelação!

Comuniquei o diálogo ao Múcio e ele ligou em seguida para o correspondente da UH em Brasília, Dirceu Coutinho, a fim de saber do paradeiro do presidente Jânio àquela hora.  Uns 15 minutos depois, o Dirceu informava que o presidente estava na solenidade do Dia do Soldado, na praça dos Três Poderes, durante a qual algumas personalidades eram condecoradas com a Ordem de Mérito Militar.

Brisola e Che Guevara – Por esses mesmos dias ocorria em Punta del Este (Uruguai) uma conferência da Organização dos Estados Americanos-OEA, com a participação de Cuba, cuja delegação era encabeçada pelo ministro Ernesto Che Guevara. A representação brasileira era chefiada pelo ministro da Fazenda, Clemente Mariani, mas, de última hora, Jânio incluiu na delegação patrícia, como representante pessoal seu, o então governador gaucho Leonel Brisola, incumbindo-o de fazer pronunciamentos por uma “política externa independente”, contrariando o tradicional alinhamento do Itamaraty pelo Departamento de Estado americano, e com a incumbência de convidar Che Guevara para, ao regressar a Cuba, passasse por Brasília, a fim de ser recebido no Palácio do Planalto.

Para surpresa geral da Nação e estupefação dos três ministros militares, Jânio condecorou Guevara com a Grã Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira, o que determinou radical mudança de atitude dos três ministros militares com relação ao plano de “golpe gaulista”. Isso foi expresso publicamente a Jânio na Ordem do Dia Conjunta dos três ministros militares, lida pelo general Denys, na qual era manifestado pleno apoio à pronunciada política externa independente, mas com o funcionamento do Congresso e plenas garantias constitucionais.

Diante do que acabava de ouvir, Jânio, já estomagado desde a véspera com a denúncia do plano de golpe feita espalhafatosamente pelo governador Carlos Lacerda, do então Estado da Guanabara, retira-se abruptamente da solenidade (daí a famosa foto em que parece tropeçar nos próprios pés), retorna ao Palácio do Planalto, escreve a enxutíssima carta de renúncia (a justificativa em duas laudas, havia sido escrita na véspera)  e pede que o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, a entregue ao Congresso no final da tarde, quando o Legislativo já estaria vazio, sai às pressas para o aeroporto e voa no jato executivo pra São Paulo, onde já contava com a adesão do governador Carvalho Pinto ao plano de golpe, com o apoio do titular do II Exército, general Falconieri, e também do comando da base aérea militar de Cumbica, para levantar a população paulista, nos ombros da qual JQ pretendia retornar a Brasília, levando no peito a faixa presidencial que havia sido levada a Cumbica por seu ajudante de ordens.

Aceita a renúncia –  Enquanto isso, o ministro Pedroso Horta, descumprindo a orientação de Jânio, entrega a carta antes da hora (por volta das 13) ao presidente do Senado, Moura Andrade, que convoca imediatamente o Congresso, comunica o recebimento e procede à leitura da carta de renúncia, ao que o deputado Almino Afonso toma a palavra e pretende que a carta de renúncia seja objeto de discussão. O senador desconsidera a questão, dizendo que pedido de renúncia de Presidente
da República não se discute, aceita-se simplesmente. E passa às providências para que o substituto legal, o presidente da Câmara Federal, Raineri Mazili assuma o trono no Palácio do Planalto. E assim se fez imediatamente.

Última tentativa  – À noite, fui à residência do então deputado estadual Wilson Rahal (PSB), cronista de UH e ex-lider da bancada governista na Assembléia Legislativa quando Jânio era governador. Uns 20 dias antes, Jânio mantivera um encontro de horas de conversação e uísque com Wilson na residência de um empresário em São Paulo, comunicando-lhe que estava decidido a romper com a União Democrática Nacional, partido que  encabeçara a coligação que o elegera presidente e imprimir tônica nacionalistas a seu governo, concitando-o a mobilizar os setores sindicais, estudantis e militares nacionalistas de São Paulo, em apoio à sua guinada política.
Quando cheguei à casa do Wilson Rahal já lá estavam alguns próceres políticos e empresariais, advogados e jornalistas amigos, como Chopin Tavares de Lima e Fernando Gasparian,  aos quais revelei que eu já sabia com semanas  de antecedência do plano golpista de Jânio, plano esse exposto com todas as letras no capítulo intitulado “Episódio da renúncia” do livro “História do povo brasileiro”, de autoria de Jânio Quadros e Affonso Arinos de Mello Franco (J. Quadros Editôres Culturais S. A., São Paulo, 1967).

Logo depois, Wilson recebia telefonema do ministro da Casa Civil de JQ, José Aparecido, dizendo estar em Cumbica com JQ e precisava transmitir-lhe um apelo do presidente. Seria essa a última tentativa de mobilização popular para o sonho de retorno a Brasília. Em menos de uma hora, José Aparecido chegava à casa de Wilson em companhia do ministro do Trabalho, Castro Neves, e do Secretário de Comunicação da Presidência, o jornalista Carlos Castelo Branco.

Os três comunicaram que Jânio havia brigado e agredido Carvalho Pinto, dentro do avião, quando este se recusou a não aceitar a posse de Raineri Mazzili na Presidência, quando esta já havia sido decidida pelo Congresso, e queria que o Wilson tratasse de mobilizar os setores nacionalistas para sua volta ao poder. Wilson disse aos três portadores do apelo de Jânio que àquela altura, com o Congresso já tendo dado posse a Mazili na Presidência, já era tarde,  e os três emissários concordaram que não havia mais o que fazer.

Na ocasião, tive oportunidade de repetir, para que os três ministros também soubessem, que semanas antes eu já sabia do plano de golpe de JQ. O José Aparecido arregalou os olhos e disse que ignorava tudo. Anos depois, em jantar comigo em Pequim, ele reiterou-me que, realmente, não soubera de nada. Castro Neves limitou-se a dizer: “Bazófia do Piza!” (os dois eram rivais no comando do PTB paulista). Já Castelo Branco, acompanhando-me à cozinha da casa onde eu tomava a iniciativa de providenciar água e café para os visitantes, confidenciou-me:

─ Martins. Boa parte do que você nos contou confere bastante com as anotações que já fiz sobre os acontecimentos de hoje, mas só publicarei quando os principais envolvidos já não existirem.E assim fez alguns anos depois, por sua coluna diária no  Jornal do Brasil e em opúsculo que reúne essa e outras crônicas.

Cumbica e quartel de Quitauna – Segundo relato do Dr. Piza, enquanto Jânio se encontrava em Cumbica, os lideres do MMN, que controlavam o Quartel de Artilharia Pesada de Quitauna, davam cumprimento a medidas contra o tal “golpe gaulista”. Numa delas, o coronel comandante do quartel telefonou para o general Falconieri, comandante do II Exército, pedindo que comparecesse com urgência ao quartel, para resolver um problema que dependia de sua presença.

Inteirando-se da nova situação em Brasília, com o deputado Raineri Mazili já tendo assumido a Presidência da República, o general Falconieri telefona para o comandante da base aérea de Cumbica e ordena, como comandante do II Exército, que se livre imediatamente da presença do ex-presidente naquela base, pois Jânio Quadros já não era autoridade nenhuma no País. Caso contrário, Quitauna poderia bombardear Cumbica com os obuses do então GO 155 (hoje, 12.o GAC ) de Jundiaí, que já estavam a caminho do quartel.

Jânio teve que sair imediatamente de Cumbica, de carona no carro do secretário do deputado Plínio Salgado que levara a JQ a solidariedade do ex-líder integralista. Jânio passou em sua casa e seguiu com a esposa para Santos, onde permaneceu por alguns dias em casa de um empresário que sempre apoiara suas campanhas eleitorais.  Dias depois foi para a Inglaterra no camarote do armador de um barco mercante inglês.


jayme-martinsJAYME MARTINS

Jornalista, ex-chefe de reportagem do jornal Última Hora de SP,  ex-correspondente na China  de O Globo, Estadão, JT, Rádio Eldorado, Rádio Guayaba e SBT, Grande Prêmio de Jornalismo Líbero Badaró, da ABI e Revista Imprensa, pela cobertura dos  acontecimentos da Praça da Paz Celestial em 1979, Diretor de Overchina Consultoria e Edições,jayme.overchina@gmail.com


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