Recentemente, no Dia da Consciência Negra, vimos diversas ações, discursos e celebrações que buscaram destacar a importância da luta por igualdade racial no Brasil. Mas, além da data em si, fica a reflexão: o que fazemos, como sociedade, para que o reconhecimento da população negra vá além de um feriado? Entre tantos aspectos dessa luta, a busca por representatividade na mídia e nos espaços públicos é uma das frentes urgentes e, ao mesmo tempo, é frequentemente negligenciada. Não se trata apenas de aparecer por aparecer, mas de existir plenamente, de ver suas histórias e narrativas refletidas no que consumimos e vivemos.
Quando pedimos que filmes, novelas, marcas e espaços incluam pessoas diversas em etnia, orientação sexual, identidade de gênero e tipos de corpos, frequentemente somos acusados de exagero, como se essa demanda fosse “mimimi” ou uma imposição da cultura woke. Mas será que essas críticas partem de quem já enfrentou o peso de nunca se ver representado? Será que entendem o impacto psicológico e social de crescer e viver em um mundo onde você é sempre relegado ao segundo plano — ou à ausência completa? A representatividade importa porque ela molda imaginários e constrói possibilidades. E quando ela falta, a exclusão que gera não é apenas simbólica; ela é concreta e persistente.
Como é para Tiago, enquanto homem negro e LGBTQIAPN+, passar por esse tipo de situação? E quais são as consequências para uma sociedade que embebe seu subconsciente diariamente com representações desse tipo? Transeuntes podem nem perceber ou se incomodar com isso, mas, pouco a pouco, vai se criando em torno de todos uma naturalização da falta de diversidade que cega. Além disso, aprimorar um espaço público, divulgar e não prezar por incluir o público como um todo é afirmar, ainda que indiretamente, que essa reforma não é direcionada para todos — mesmo se tratando de um dos espaços mais públicos da região e, digo mais, do shopping mais popular para o proletariado. Enfatizo a classe social que frequenta o shopping porque, ao analisar a situação socioeconômica do Brasil, o espanto é ainda maior. Segundo o IBGE de 2022, 56% da população brasileira é composta por pessoas negras e pardas. Ainda assim, segundo o Ministério da Igualdade Racial, essas pessoas recebem, em média, 42% menos do que trabalhadores brancos. Considerando essas estatísticas, entendemos mais profundamente o quão repulsivo é promover melhorias no shopping mais acessível financeiramente da cidade e não incluir diversidade racial.
Podemos olhar pelo lado estrutural e entender como, em 2024, ainda persevera a ideia de que, nas poucas vezes em que vemos pessoas negras nas mídias, elas aparecem inúmeras vezes em situações de serviço. Durante o século XIX, temos diversas pinturas ilustrando pessoas negras de formas animalescas; por décadas, vimos nas novelas mulheres negras conseguindo papéis apenas como empregadas. E, hoje, nos deparamos com o mesmo padrão: uma ilustração digital de uma mulher negra, trajando um avental e anotando pedidos. O que há de tão diferente nisso em relação às pinturas de Jean-Baptiste Debret, que, com suas pinceladas na década de 1820, retratou em “Um Jantar Brasileiro”, uma mulher negra trajando branco e servindo à mesa pessoas brancas no período escravocrata?
OUTROS ARTIGOS DE ANNA CLARA BUENO
PARA CRIAR, ARTISTA PRECISA SE REINVENTAR
É possível que ainda existam pessoas que insistam em pensar que as coisas hoje são muito diferentes. Afinal, dizem, as pessoas agora recebem salário, certo? Pois bem, dentro dessa questão, Tiago naquele dia (e em muitos outros) também analisou algo: a maior parte das pessoas contratadas para servir eram negras. E essa é a questão! O racismo estrutural muitas vezes impede que uma pessoa negra possa ser gerente, ocupar espaços de poder ou, sequer, sonhar em chegar lá. Isso ocorre porque há poucas pessoas parecidas com elas ocupando esses espaços e, com frequência, faltam representações positivas nas mídias. Já o salário médio para profissionais de limpeza em um shopping é apenas R$ 200 a mais que o salário mínimo e, geralmente, a jornada é de 6×1, totalizando, no mínimo, 44 horas semanais.
Dizer que o racismo acabou é ignorar o poder do simbólico, o impacto do repetido e a força do cotidiano. Se, hoje, ainda vemos pessoas negras restritas a papéis de subserviência — seja em ilustrações ou na vida real —, o que estamos de fato comunicando como sociedade? Não basta que existam leis ou que se aponte para um progresso em estatísticas; é necessário que, de fato, se rompa o ciclo da exclusão velada e da violência simbólica. As pinturas de Debret e o banner no shopping têm mais em comum do que gostaríamos de admitir, e isso não é apenas uma coincidência histórica. E não, essa dissertação não é apenas sobre um banner no Maxi Shopping.
ANNA CLARA BUENO
De nome artístico Anubis Blackwood, é drag queen, artista performática e visual, professora de inglês, palestrante e produtora cultural. É membro do coletivo Tô de Drag, o primeiro de arte drag de Jundiaí e região. Colabora com o ‘Grafia Drag’, da UFRGS. Produz o festival Drag Vibes em colaboração com o coletivo, para democratizar a arte drag, mostrar sua versatilidade e levá-la a espaços e públicos novos por meio de performances plurais e muito diálogo.
VEJA TAMBÉM
PUBLICIDADE LEGAL É NO JUNDIAÍ AGORA
ACESSE O FACEBOOK DO JUNDIAÍ AGORA: NOTÍCIAS, DIVERSÃO E PROMOÇÕES