A SAUDADE que se transforma

saudade

Há um lugar dentro da gente onde o tempo não passa — ou, se passa, caminha com passos de algodão. Ali habitam vozes que já se calaram, cheiros que já se dissiparam, lugares que mudaram de nome, de cor, de rosto. E mesmo assim, continuam existindo em nós com uma força quase física. É nesse lugar que mora a saudade. Mas não aquela saudade romântica e leve, que se satisfaz com uma lembrança breve. Falo da saudade que finca raízes. Aquela que se instala sem pedir licença, mexendo com os cantos mais íntimos da memória e do afeto. Uma saudade que é, ao mesmo tempo, dor e prova de que algo — ou alguém — realmente importou.

Saudade é o que sentimos quando o presente não é suficiente para conter tudo o que já fomos. Quando um perfume, um objeto, um bilhete esquecido entre livros nos transporta a outra época, outro mundo, outro “eu”.

Há quem diga que a saudade é o preço que pagamos por viver intensamente. Talvez. Mas ela também é uma forma de resistência. Em tempos de descartabilidade, de relações breves e vínculos rasos, sentir saudade é prova de enraizamento. Sentir falta é, de certo modo, reconhecer que algo foi grande demais para caber no tempo que teve.

E quando a saudade nos aperta, quase sempre ela vem acompanhada da sua irmã mais velha: a nostalgia, que diferente da saudade, não se prende a uma única ausência. Ela pinta cenários, constrói atmosferas, recria sensações. É o sentimento que nos visita quando vemos uma foto antiga, quando ouvimos uma canção que embalou uma fase, quando assistimos a um filme que nos devolve o olhar do passado.

A nostalgia é uma forma poética de lembrar. Mas é também um processo analítico, embora silencioso. Porque ela nos obriga a confrontar o tempo — o que fomos, o que queríamos ser, o que nos tornamos. Ela faz da memória uma bússola emocional. E mesmo que às vezes nos engane com idealizações, ela também nos oferece pistas do que ainda buscamos.

Mas nostalgia e saudade, quando bem vividas, não nos paralisam. Ao contrário, podem ser combustível para a esperança. Se a saudade fala do que se foi, a esperança fala do que ainda pode ser. Ela é filha legítima da memória e da imaginação. É o desejo de que, mesmo diante das perdas, ainda há algo por vir que nos valerá a travessia.

Esperança não é ingenuidade. É um tipo de fé realista. Ela nasce da dor, mas escolhe a vida. Surge da falta, mas planta sementes. A esperança que nasce da saudade é uma esperança profunda — porque carrega consigo a densidade da experiência e a coragem da reinvenção.

Esperar, nesse contexto, é acreditar que aquilo que nos foi caro não se perdeu, mas se transformará em algo novo. E é aqui que entra a crença. E crença não é, necessariamente, religião. É convicção interna. É sustento. É o que nos move quando tudo parece incerto. A crença pode estar em Deus, na arte, no amor, na justiça, no ser humano. Pode estar em uma lembrança, em uma promessa, em uma poesia.

Crer é, de certo modo, sustentar-se mesmo quando tudo ao redor vacila. É fazer do invisível uma estrutura de apoio. Quando a saudade nos invade e a nostalgia nos embriaga, é a crença que nos impede de afundar. É ela quem nos aponta o próximo passo. E é pela força dessa crença que algo essencial acontece: a transformação.

Transformar é a forma mais nobre de continuar. Não se trata de apagar o passado ou ignorar as dores, mas de reorganizar o que sentimos para que possamos seguir. Transformar é fazer do que foi vivido matéria-prima para o que ainda virá.

Há quem transforme saudade em arte. Nostalgia em escrita. Esperança em projetos. Crença em pontes. E assim, com coragem e alguma delicadeza, aquilo que doeu passa a ensinar. Aquilo que apertou o peito passa a expandi-lo. Aquilo que parecia nos afundar começa a nos erguer.

Transformar é o gesto mais maduro de quem já sentiu demais. Porque exige olhar para trás com reverência, para o presente com coragem e para o futuro com humildade. E, acima de tudo, é uma forma de permanecer inteiro, mesmo em meio às perdas.

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Hoje, ao caminhar pela casa, esbarrei em um antigo caderno. Dentro dele, uma letra que já não vejo mais. Um nome que ainda dói. Um tempo que já foi. Sorri. Não com os lábios, mas com a alma.

A saudade ainda está aqui. A nostalgia também. Mas com elas, mora agora uma esperança serena, uma crença miúda, uma transformação em curso. Já não sou o mesmo — e ainda assim, continuo sendo. Porque, no fundo, viver é isso: aprender a conviver com os vestígios e com as possibilidades. É acolher a chuva e preparar o campo. É lembrar, mas também sonhar. É transformar o que fomos em impulso para o que seremos.

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

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