Há vivências de transformação em que apenas o tempo da maturidade permite. Domingo passado, encontrava-me na Catedral Nossa Senhora do Desterro, à espera do início da missa das 8h30, quando o vi o moço, que conheço das asperezas do cotidiano, dirigir-se rapidamente para a Capela do Santíssimo. Bermuda, camiseta e chinelão, como se veste de costume. Desconheço se possui família, sei apenas que mora em pensão e faz alguns serviços braçais para sobreviver. Apreciaria que tivesse me olhado, para poder sorrir a ele. Ignorava sua fé. Que bonito começar o dia, apesar das agruras de sua história, falando com o Senhor.

Recordei-me de um fato acontecido na década de 90. Achava-me no mesmo banco e aguardava a missa das 18h15. Uma das quatro primeiras mulheres que integrou a Pastoral da Mulher, da porta da Igreja, gritou meu nome. Estremeci. Há pouco, estivera com ela, em conversa dolorosa de mais de uma hora. De coração inflamado pelos desencontros e dores, pensava em se suicidar. Disse-lhe sobre o amor e a misericórdia imensa de Deus, que a observava desde o ventre materno. Estremeci, porque tive a sensação de que as pessoas que lá estavam me notavam com olhos de condenação. Chamava-me uma mulher de pés descalços, de pele marcada pelo pó do asfalto, olhos ébrios, descabeladas. Levantei-me e, embora com expressão de reprova, ela se achegou, sentou-se e me disse que fora até ali para agradecer comigo ao Pai do Céu que, naquele dia, lhe salvara a vida. Dentro de mim, ficou uma mistura de sentimentos: a certeza de que Deus a abraçara e a preocupação com o que diriam aqueles que a presenciaram ali, daquele jeito, e não sabiam o que acontecera anteriormente. Na verdade, constato hoje que o julgamento era meu, atormentada com a minha imagem, e não de quem também participaria da Missa.

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O tempo me ensinou a ser eu mesma, sem me deter no que possam pensar sobre minhas atitudes em relação aos excluídos. Saí do palco e a plateia não me impressiona mais. Constatei que esse desassossego era preconceito meu.  Foi a sensação que experimentei ao ver o homem seguir em direção à Capela do Santíssimo. Gostaria de ter lhe acenado, para lhe dizer que me alegro com sua amizade e que não tenho dúvida de que os indivíduos todos, mesmo que cobertos com a fuligem de suas divergências, são filhos do Criador. (Foto: patrimonioespiritual.org)


MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE

Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de risco.