DESNECESSÁRIO, mas extremamente evidente…

Durante a semana vários foram os momentos em que pudemos nos deparar com o desnecessário. Por muitas vezes me peguei pensando se meu humor não estava em baixa ou se preconceituosamente não havia me deixado levar por uma crítica que não se encaixava em canto algum de minha existência.

Entretanto, com a repetição da notícia e com a crítica sendo exercida com mais voracidade, percebi que minha ideia estava adequada e que meu posicionamento fazia sentido diante do exposto. Em nenhum momento anterior houvera impropriedade em minha leitura contextual e estava muito bem embasado em meu posicionamento.

Falo do desnecessário mas evidente caráter deslocado e inadmissível do senhor pai do nosso meninão Neymar Junior. Como disse anteriormente, Neymar beira a um evento psicopatológico que dificulta sua proximidade com cidadãos comuns, visto o fato dele não ser cidadão nem comum, à luz de sua compreensão de Mundo.

O fato dele ser o jogador de futebol brasileiro mais conhecido, mais seguido no Instagran, mais visitado no Facebook, mais idolatrado por crianças e jovens, faz dele um ser transcendental e intocável, sem possibilidade de se aproximar daqueles que o veneram, justamente por pertencer a uma categoria privilegiada de “seres ímpares”, acima do Bem e do Mal, que existe para ser ovacionada em qualquer circunstância.

Em artigos anteriores apresentei a argumentação de que ele é pessoa pública e como tal deveria respeito e atenção a quem assim o consagra e, diante das últimas aparições, agira como infantilóide, desmerecendo o carinho de quem tanto o ovaciona, como um exemplo notório de falta de educação e excesso de grosseria, volto a apontar para a mesma janela: comportamento do meninão indócil.

O que muda na atual paisagem é o fato do protagonista não ser o meninão, mas o entorno deste: seu pai, seu criador. Bem à moda do Criador e da Criatura, se não for muito sacrilégio estabelecer uma metáfora entre estes e estas coisas que nos assusta, em cada ato de suas aparições. Suas grosserias e insensatez nos fazem ter vergonha de ter a Criatura como nosso representante no cenário esportivo mundial.

Porém, o que fazer se a “meninada curte”? Como refutá-lo se “as mina” aplaudem (…). Como contrapor se as “vozinha” acham fofo? E assim nossa Criatura se aproxima cada vez mais da imaginária postura do delinquente famoso e irreverente. Ouço ate dizer que o Maradona foi assim. Ou que Ayrton Senna fora anti-social; mas nada se compara a tamanha falta de percepção do espaço e da existência humana dos fãs.

Desta vez o Criador foi insuperável. Recebendo um telefonema de uma repórter, que se identificou como tal e fez uma pergunta sobre uma festa, o aspirante ao Olimpo disparou uma rajada de impropérios e de desaforos, grosseiros, desnecessários mas evidentes. Mais uma vez a saga se perpetua e temos uma explosão de posicionamentos desestruturados e inconvenientes, semelhantes aos que a Criatura apresenta com contumaz frequência.

Muita confusão no meio jornalístico, muito exposição midiática mundo afora, muita repercussão dentro e fora do país e, como não poderia deixar de acontecer, muita gente defendendo a posição tosca do empresário e pai da Criatura mal-educada.

Em paralelo, a crônica esportiva cria coragem e expõe que sua valorização cai sensivelmente, no mercado de atletas e que nossa Criatura despenca de posição, com a subida de jovens atletas, que não fogem pelas portas dos fundos nem se sentem o salvador de uma pátria falida. Este fato, combinado com o desnecessário mas evidente comportamento do Criador foi suficientemente grande para voltarmos ao cenário internacional da crônica esportiva. Mais uma vez pelas portas do fundo.

Exatamente nessa proposta de análise, vamos aos fatos mais próprios: afinal estes exemplos serão fundamentais na educação de nossos jovens? As famílias brasileiras estão atentas à estas questões? Percebem a imperiosa necessidade de trabalhar as notícias divulgadas pela mídia impressa, visual e televisiva? Educadores conseguem ter alcance do desvalor que estes fatos produzem ao meio esportivo? Ou ainda cremos, como na década de 70, que o esporte tirará o Brasil da pobreza e salvará nossos jovens?

Será que, ainda, temos pessoas que acreditam no poder celestial de salvar uma população jovem com a força do esporte? que o futebol alavancará a massa da pobreza conduzindo-a ao mais elevado patamar social? Participei de uma banca de doutorado na Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) no início dos anos 90, onde o pesquisador já comprovava que nem um por cento da população de iniciantes nas escolinhas de futebol atingiria o estrelato e que nem 10% dos atletas em exercício recebiam mais do que dois salários mínimos.

Como disse, em início dos anos 90. Outros estudos avançaram com mais detalhes pela mesma trilha, sempre aprofundando e fortalecendo estes dados, visto que a tese de Valter Gama se tornou uma referência no meio acadêmico; mas as perguntas anteriores se mantem presentes e fortes, portanto eu as copiarei neste parágrafo: educadores conseguem ter alcance do desvalor que estes fatos produzem ao meio esportivo? Ou ainda cremos, como na década de 70, que o esporte tirará o Brasil da pobreza e salvará nossos jovens? Será que, ainda, temos pessoas que acreditam no poder celestial de salvar uma população jovem com a força do esporte? Que o futebol alavancará a massa da pobreza conduzindo-a ao mais elevado patamar social?

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É assustador como se perde de vista o desserviço prestado por pessoas desta magnitude para uma população que beira ao caos social e cultural. Enquanto ainda estamos preocupados com a maciça ocupação dos Céus do Senhor Jesus por apenas uma parte de uma das facções evangélicas, enquanto ainda ficamos horrorizados se Pabllo Vittar é “o” Pabllo ou “a” Pabllo, enquanto ainda acreditamos na recuperação do ex-presidente Collor de Melo, cultuamos um Criador e uma Criatura como estes dois que ocupam lugar de destaque no imaginário social de nosso povo.

Existe saída? Temos meios para reestruturar os conceitos e percepções existentes em nosso contexto nacional? Sim. Existe. Acredito. Precisamos de uma escola que ensine o real e o atual, sem máscaras e sem escamotear a verdade com que nos deparamos cotidianamente. Precisamos de educadores que entendam mais de educação do que de ideologias e que façam a diferença. Precisamos de um ensino realmente voltado às diferenças e às nuances sócio-culturais, respeitando-as e fortalecendo cada canal de desenvolvimento existente.

Desnecessário mas evidente dizer que necessitamos de profissionais da Educação que acreditem em seu papel transformador e que sejam conhecedores de sua força emancipadora, calcada no saber (então, sugiro uma leitura profunda de Adorno ou Horkheimer). Somente assim acredito que abandonaremos nossos ídolos e mitos e desbancaremos essa sofrível Criatura e seu abominável Criador.

Bom retorno às aulas.


AFONSO ANTÔNIO MACHADO

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia, editor-chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.