AVÔ

AVÔ

O avô arrastava o menino pela mão.

– Desse jeito não chegaremos hoje.

– Olha vô, aquela nuvem não parece uma girafa? E ria…

– É uma girafa arrastando o filho como o senhor faz agora.  

Cabia ao avô aposentado a tarefa de buscar o pirralho na escola. Mas como divagava aquele menino. O olhar vivo a correr os lados e a espreitar novidades, nada perdia, o saltitar alegre e arteiro irritava o avô de passos largos, retos e apressados.

– Vô… como ontem choveu, hoje teremos infinitos rios de poças a atravessar… será que há pontes em todos eles? Será vô… ou teremos que nos aventurar a nado? Alcançaremos o mar e saquearemos um navio de piratas… seremos marujos, o que acha, vô? 

Assim, a espelhar-se em cada poça d’água, era ele o desbravador dos sete mares e o avô, seu imediato.

– Não deves pisar em poças… são águas sujas, ralhava o avô.

– Água de chuva, vô… água de chuva…

O avô era de poucas palavras. Diferente do Vô Nino, que havia partido num foguete para além daquelas nuvens onde a girafa brincava com o filho. Vô Nino visitava seus sonhos e, a viverem aventuras que nem cabiam em sua imaginação, deixavam a saudade leve como as nuvens de girafa.

– Vô, o que a mãe terá feito hoje pro almoço? Aposto que ela fez ovos mexidos… amo ovos mexidos. Mas é preciso saber se não são ovos de ouro, antes de quebrá-los na frigideira onde a magia se desfaz. O senhor conhece a história dos ovos de ouro? Vô Nino me contou… quer que lhe conte?

– Hum, resmungou carrancudo o avô.

– Olha vô, o dono da banca acenou pro senhor. 

– Não tenho assunto com ele.

– Ah… mas ele deve querer lhe falar. Por que não paramos um pouco? Preciso descansar, minhas pernas ainda não alcançam seus passos largos…  e também poderemos trocar figurinhas.

– Apressa-te… deixa de histórias…tenho afazeres.

– Ah vô..  o senhor passa tardes amontoado em sua cadeira, a reclamar do barulho das maritacas que não te deixam dormir… porque em vez de dormir, vô, não faz uma pipa comigo? Podemos empiná-la ao pé da montanha azul.

– E existe vegetação azul? Que tolice, menino! O que tens aprendido na escola?

– Ah… mas quando olhamos daqui elas são azuis… olha vô, vê se não são mesmo azuis.

– Ora essa… lá tenho tempo de dar cores a serras. Serras são serras e se não verdes… da cor de terra.

O menino chutou uma pedra e ela bateu no portão da igreja.

– Ouviu o barulho, vô? Se o padre também ouviu, virá atrás de nós… apostaremos uma corrida e  venceremos… ele não pode correr tanto com aquela batina… cruzaremos a linha de chegada e…

– Ah como falas… Cala-te um pouco… falas mais que tua boca!

Riu alto o pirralho…

– como o senhor é engraçado, vô… como posso falar mais que minha boca se apenas ela é que fala em meu corpo? Mas sabe, vô… às vezes acho que a gente fala mesmo sem a boca… e os outros entendem, não é?!

– Quanta asneira… 

– Asneira nada, vô… o senhor mesmo é calado e eu entendo seus resmungos… suas caras bravas… sua irritação. Como entendia  quando o vô Nino fazia cara de querer soltar pipa comigo. Era uma cara engraçada!

Neste momento o avô parou e virou-se para o pirralho:

– Hum… Vô Nino, que cara tinha aquele velho que não fosse de aluado? Que cara era essa de querer soltar pipa?

– Ah era a cara mais engraçada do mundo… era bonita e alegre como a minha, quando mamãe faz pudim de leite. Era cara de quem sabia que eu tinha pouco tempo para ser criança, pois tinha deveres de escola a fazer. Era cara de quem não queria perder o tempo de ser criança comigo.

O menino a chutar pedregulhos, levantando respingos de lama, suspirou uma saudade profunda… e seguiu a acenar com risos a quem passava e a pisar poças de mares imaginários. Nem percebeu que o avô soltara sua mão e parado o olhava de longe.

Teve medo… o avô nunca parava e nunca o olhava daquela maneira. O avô era sério e tinha pressa.

– Que foi, vô? Foi muita asneira que eu disse? Eu falo pelos cotovelos… vô, cotovelo tem boca?

Riu-se. Mas o avô imóvel o preocupou…

– Vô?

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MENINO E MENINAS

O avô sentiu a pressa e seriedade voarem pelos ares com as maritacas barulhentas… de repente, como há muito não ouvia, o som da infância apitou em seus ouvidos tal qual um navio anunciando partida… e então, o vento na ilusória proa lacrimejou seus olhos que olhavam pro alto:

– Vê, a girafa está a arrastar o filho para detrás da montanha azul… que será que tem lá?… Corre, menino… quem chegar primeiro escolhe a cor da pipa… corre herói… salva nossos ovos de ouro… corre comandante, alça a âncora do nosso barco, há mares a desbravar… corre… corre meu neto, a chegada já não importa… mas corre que a infância não espera.(Foto: Freepik)

ROSITA VERAS

É escritora, ghostwriter e articulistaRositaveras.blogspot.com

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