Cresci na região central da cidade e cedo comecei a entender esse negócio de bairrismo. Apaixonado por mapas, ali, na carta impressa, não via, obviamente, os aspectos humanos dominantes, que criavam divisões na cidade, só possíveis descobrir se fazendo presente em cada local. Para uma criança sedenta em sair a pé, de “bike” ou de ônibus e descobrir cada recanto de sua cidade, o que interessava era a geografia física. Como era cada lugar, sua paisagem natural, suas construções, ruas, casario, praças…
Conforme fui crescendo e dando os primeiros “roles”, descobri a geografia humana e algo inerente aos humanos; a defesa exacerbada de territórios que consideram seus. Até então sabia que defendemos o que realmente é nosso, a propriedade particular, o que temos, o que construímos naquilo que compramos. Além disso, entendia que entrava o senso coletivo, deixando de ser “meu” para ser “nosso”. Nosso bairro, nossa cidade, nosso país… nosso planeta! Aqui começa a análise sobre o bairrismo. Se é nossa cidade, por que determinadas pessoas criam divisões, intrigas, implicâncias entre moradores de diferentes bairros? Por que menosprezar o morador deste ou daquele bairro ou chegar ao ponto de se criar gangues de bairros, como vemos em algumas grandes cidades, como nas capitais? Em São Paulo, nos anos 80, lembro que um colega, na época jovem como eu, morador da Penha, me soltou a seguinte expressão: “em São Miguel Paulista só tem índio”. Já havia percebido plenamente o forte teor de preconceito e discriminação nessas palavras. Ele, morador da Penha, bairro tradicional da capital, classe média e média-baixa; São Miguel, bairro formado pela classe operária recente e com muitos migrantes. A expressão daquele colega estava carregada de discriminação, evidenciando que o bairro vizinho era um incômodo a ele… eles, afinal, não era ele sozinho, e sim o conjunto, a maioria do bairro assim considerava São Miguel. E mais, usar o termo “índio” destacava mais uma discriminação, em relação à diversidade de povos de nosso país. Deixo claro: nosso país.
Conheci cedo também a rixa, os excessos entre torcedores de clubes de futebol, onde a sociedade ainda não conseguiu eliminar a violência em estádios e nas ruas antes e após clássicas partidas entre grandes times. Conheci o “separatismo” também nas religiões. Se você colocar os pés numa outra denominação, seus irmãos de igreja já irão lhe olhar com desconfiança e começarão a se afastar de você. E o bairrismo vai pelo mesmo caminho. Em algumas pessoas e famílias ele é realmente exacerbado, deixando de ser aquela simples, normal e inofensiva identidade cultural para ser fator de divisão, discriminação, ostentação, orgulho doentio. Como morador do centro naquela época, fui sentindo que para determinadas famílias deste ou daquele bairro, o morador do centro era um privilegiado, orgulhoso e quando ia aos bairros, era para “xeretar”, matar a curiosidade para depois falar mal. Mas percebia que em cada bairro existia também o orgulho de seus moradores. A defesa e a paixão por aquele bairro. A luta por melhorias – o que é importante. Melhorias que vieram no decorrer destas últimas décadas e constatamos pelos canais de comunicação. São Miguel Paulista possui toda a infraestrutura necessária que permite determinada qualidade de vida. Bairros periféricos de Jundiaí idem. Asfalto, iluminação, saneamento, transporte… ainda que carreguem os estigmas inerentes às periferias e problemas pontuais que se arrastam pelas maquiagens de gestores, o orgulho da imagem de seu bairro produz prazer e estimula aquela competição e sensação de “sou melhor”, nos mesmos moldes das torcidas organizadas, placas de igrejas, etc.
Penetrando na essência ser humano-meio ambiente, nossas cidades são iguais ao nosso corpo. Veias e artérias contêm ingredientes daquilo que ingerimos, nos alimentamos. Veias e artérias são as vias abertas em nossas cidades, por elas circulam nossas energias, que saem das propriedades privadas e constroem a identidade dos bairros e cidades. As maquiagens. As mesmas maquiagens que fazemos em nossos corpos para desfilarmos pelas ruas, shoppings e mostrarmos nas selfies. As mesmas maquiagens que fazemos em nossas propriedades, dando retoques mais consistentes nas partes mais expostas ou onde recebemos as visitas. O ser humano carrega manias e defeitos crônicos, que passam de geração para geração, que se expandem através de uma energia densa que domina a sociedade e se integra à cultura. Neste ponto se destaca o cuidado à saúde física e mental. Cuidados retalhados pelo fato das pessoas “gostarem mais de certas partes do corpo do que de outras”. Todo mundo tem alguma insatisfação com alguma característica física de seu corpo, característica que esconde, não revela. Só revelará depois de investir na mudança, seja através de exercícios, cirurgia ou alguma mera maquiagem. Ainda assim, descuidamos e muito de nosso corpo. Abusamos de alimentos que fazem mal, dão apenas aparência de força e saúde. Preocupamo-nos excessivamente com nossa imagem porque também estamos sempre de olho na imagem dos vizinhos, dos famosos… nos prendemos às aparências. E de nossos corpos para os corpos dos bairros e das cidades! O senso de bairrismo contém exatamente todos os elementos que carregamos em nosso ego, nas tradições familiares e nessa energia densa que envolve a sociedade.
Este bairrismo é também bastante estimulado pelo formato de marketing político que acompanhamos diariamente pela internet. Quando políticos de todos os níveis e também secretários, funcionários de todos os escalões, assessores, aqueles que precisam dar uma “puxada” em seus chefes, vêm aos canais de comunicação fazer comparações entre municípios; “olhem, estamos muito melhor que aquela cidade X, aquela cidade Y, aquele estado brasileiro, assim, assado…” É exatamente o que todos fazem em suas propriedades; dão um brilho onde os visitantes terão acesso. Mostram aos outros somente os pontos arrumados, bem cuidados. E como em nossos corpos, as áreas menos cuidadas acabarão se manifestando mais cedo ou mais tarde e as consequências virão. Aí vem a surpresa de todos: “ué, mas não mostrava que estava tão bem?”
A natureza é toda interligada e o meio urbano não escapa dessa interligação. Bairros dependem uns dos outros, cidades dependem uma das outras. Para o corpo funcionar totalmente bem, todos os órgãos (bairros e cidades) devem ser bem cuidados e receberem a mesma atenção. E para isto existe o chamado trabalho conjunto, cooperativo. Cooperação. Sincronia. Mas na maioria das vezes, no âmbito político, se pratica o corporativismo e não o cooperativismo. Nesse fortalecimento grupal, sectarista, egocêntrico, a sociedade continua atropelando o desenvolvimento equilibrado, aquele que seria fator de sentirmos orgulho pelo conjunto, pelo nós, nosso e não pelo “meu, minha”. O pronome possessivo é perigoso, revela o que realmente somos conforme a intensidade e a energia que ele carrega. Posso afirmar; “minha casa, meu carro, meu bairro, minha cidade…” expressando que são meus bens materiais e a terra em que nasci e gosto… mas da forma que se expressa pode revelar também ostentação e senso de superioridade. Quando a soberba floresce, começa a maquiagem, o ato de varrer a poeira para baixo do tapete.
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Hoje, depois de tantos aprendizados (e continuo a aprender, sei que ainda tem muito mais e não terei aprendido tudo depois que partir deste plano físico), sou livre do bairrismo que muitas pessoas carregam. Gosto e aprecio a cidade em sua totalidade, todos seus bairros. Procuro carregar aquela imagem saudável do tempo de criança, que olhava o mapa e não via divisões classistas e outros “istas”. Para mim todos os bairros eram acessíveis, receptivos e todas as pessoas iguais a mim, por mais diferenças culturais e de estilo de vida existentes… e é aquilo que busco manter agora; visitar e ser bem recebido, saber entrar, saber sair. Cooperar. Nossos bairros, nossa cidade. Minha cidade porque nela nasci, mas outros tantos nela nasceram; logo, minha cidade não é minha propriedade particular, não é meu corpo todo e sim um dos órgãos, que para funcionar bem, preciso cuidar de todos que estão em volta. Cuidar de meu corpo e meus atos externos, em relação ao ambiente externo. É nesse raciocínio que vamos nos libertando das amarras dos ego, que são imperceptíveis para muitos. Nessa caminhada chegaremos àquela reflexão, que do mundo nada levaremos, não somos donos de nada. E até nosso corpo, sobre aquele que devemos ter todo o controle, é apenas uma casa temporária, de passagem. Que devemos cuidar bem dela… dela toda… mas não nos apegarmos, porque todo apego leva ao engano e ao sofrimento. Se um dia “trocaremos de casa”, de cidade, de lugar, de mundo… por que tanto bairrismo? Vamos expandir esta visão. E como eu fazia quando criança, olhar o mapa, o corpo, em toda sua extensão. O bem-viver não se fecha num círculo, ele é aberto, porque enxerga que tudo é interligado. Façamos pelo conjunto, pelo universo. Que o bairrismo fique para trás…

GEORGE ANDRÉ SAVY
Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.
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