A fotógrafa Valéria Gonçalvez sentiu que era de dar uma parada e decidiu percorrer o Caminho da Fé, em São Paulo. Durante o trajeto, ela e amiga passaram a ser acompanhadas por um cão, o cão peregrino. Ele não largou as duas. Publicamos este texto há um ano. Vale a pena ler de novo o relato de Valéria. E que vai ler pela primeira vez, se emocionará com certeza:
Valéria é o meu nome, nasci em Jundiaí, interior de São Paulo. Comecei a trabalhar aos treze anos como balconista em uma loja de fotografia. Sou muito grata por meu primeiro emprego estar diretamente ligado a fotografia. Nunca tivemos até esta época uma câmera fotográfica em casa, por isso quando comprei a primeira câmera aos 15 anos foi uma conquista muito comemorada, a companhia dela deu um outro sentido para minha vida. A partir daí comecei a contar histórias, primeiro da minha família, depois dos meus passeios e finalmente das pessoas que me contratavam. Passei por diversas redações de jornais num período de mais de 15 anos até chegar onde estou, contadora de histórias de amor.
Aos 42 anos senti que era preciso dar uma pausa, fazer algo para mim, precisava sair de trás da câmera e olhar meu interior, então, coloquei na minha agenda um período de férias, 30 dias em Junho. Não sei porque escolhi este mês, acho porque era março ainda. Esses 30 dias em Maio já haviam reduzido para 15 e antes que eu desistisse da idéia de descanso uma parceira de trabalho me convidou para uma viagem ao Caminho da Fé, trajeto do qual eu nunca tinha ouvido falar.
Quando se abre para o desconhecido algo surpreendente pode acontecer. Esta é a minha história, uma peregrina em sua primeira jornada no Caminho da Fé – Brasil.
O Tio da Milena, minha companheira no Caminho da Fé, me mandou um presente, era um bambu que ele cortou, lixou e me enviou sem ao menos me conhecer. No dia 12 de Junho de 2016 eu chegava na Estação Parada Inglesa do metrô com minha mochila de 9 quilos, minha bota de caminhada e o bambu. Confesso que a única coisa que me deixava sem graça era o meu cajado bambu, pensei em não levá-lo, mas não seria nada simpático com o Tio….então eu levei torcendo para que o motorista da Viação que me levaria até Águas da Prata impedisse seu embarque, coisa que não aconteceu.
Chegando na cidade, a Milena já me aguardava, ela era muito organizada, já tinha preparado um roteiro das cidades onde iríamos pernoitar e eu como não havia preparado nada, aceitei o roteiro dela sem questionamentos. Só depois percebi que cada pessoa tem seu ritmo e durante o Caminho comecei a me interessar e ajudá-la nesta tarefa.
Caminhar por 32 km no primeiro dia até Andradas, Minas Gerais, foi um choque de realidade. Eu não havia me preparado fisicamente e então me deparei com a maior dor que já senti, fiquei com tanto medo, não doía só meu corpo, a alma latejava e antes que eu paralisasse de repente me vi sozinha, a Milena tinha um ritmo muito bom, tinha mais um Peregrino chamado Rafão que também me ultrapassou. Eu queria gritar para eles me esperarem, porém não tinha forças, meus passos eram tão curtos, comecei a rezar, com tanta fé, quando de repente um anjo apareceu, ele era o peregrino Gustavo. Era sua quinta peregrinação, ele tinha um ritmo incrível, um condicionamento físico de admirar, podia me passar anos luz, porém em vez disso ele começou a andar do meu lado, com os passos tão pequenos quanto os meus a partir daí não sei como cheguei a Andradas, não sei como acordei disposta a continuar no dia seguinte, para mim foi um milagre e então resolvi viver um momento de cada vez e não me preocupar com os desafios que viriam e sim viver cada momento assim como os passinhos que me levaram até onde estava.
O Caminho é feito de encontros e despedidas e num certo momento nos despedimos dos dois peregrinos e continuamos nossa jornada. Essa despedida só aconteceu após muitas risadas, papo sério, bolhas nos pés, sede, coisas que aprendemos a valorizar. Cada cidade que conquistávamos era uma vitória, até que quando eu já me acostumava com o caminho algo novo aconteceu.
Era muito cedo na cidade de Estiva, Minas Gerais, durante o café da manhã na Pousada do Poka eu apreciava o nascer do sol laranja que iluminava o horizonte. Era um sentimento de abraço naquela manhã de inverno, agradeci a Deus e a Nossa Senhora Aparecida por ter chegado até ali, pela oportunidade de fazer algo diferente na minha vida. Eu sorria, tudo parecia leve, mesmo a dor já não importava, o meu sentimento de gratidão era minha cura.
No Caminho para Consolação, avistamos dois cães e eles vieram nos cumprimentar com um tradicional abraço canino! Oi amiguinhos nós retribuímos – Tchau amiguinhos e continuamos….só que um deles não aceitou a despedida. Era um macho, preto com uma manchinha branca bem pequena no pescoço, olhos castanhos, porte médio, estilo atleta pois só tinha músculos, não possuía identificação, com seu olhar penetrante e um sorriso de puro amor, deu uma flechada em nossos corações. Mesmo com esse sentimento resolvemos que ele não poderia nos seguir, pois sabíamos que não era certo, então lutamos com nossas armas, eu mais do que a Milena acredito! Bati com o cajado no chão com voz de um ser muito bravo, quis mostrar que eu era uma animal maior e cheio de fúria. Fiquei feliz quando ele recuou, acho que até comemorei minha estratégia, afinal eu não queria chegar em Aparecida com uma matilha.
Chegou um momento no Caminho que teríamos que atravessar a Rodovia Fernão Dias. Tinha uma passarela para isso, porém ao olhar para trás vi o cãozinho nos seguindo de longe, caminhando na beira da Rodovia, meu coração não pode aguentar a possibilidade dele ser atropelado, então, deixei que ele nos seguisse até o outro lado de forma segura e sem susto, afinal ele estava com um pé atrás comigo depois de conhecer a minha versão monstra.
Quando senti que ele estava seguro, novamente tentei ignorá-lo, afinal não tínhamos andado muito e existia a possibilidade dele estar em casa, ele parecia esperto e a qualquer momento então tomaria seu caminho.
Durante um tempo um silêncio muito grande nos acompanhou, na maior parte do tempo o cão caminhava na nossa frente como já conhecesse o Caminho e as vezes olhava para trás para conferir a nossa presença. Era inverno, mas o sol estava forte e paramos para tirar as blusas que eram essenciais durante a manhã e dispensáveis durante todo o dia e no final da tarde voltavam a ter importância. O cão era muito observador e percebeu que precisava nos esperar, então cavou um buraco do seu comprimento até aparecer uma terra mais úmida, deitou bem ali e ficou a nossa espera. Nós olhamos uma para outra ainda em silêncio, mas sabe aquele olhar que diz a mesma coisa.
Como era um lugar sem árvores resolvemos prosseguir sem descanso, elogiamos ele pela obra de contensão de calor, muito esperto da parte dele, mas vamos continuar, tchauzinho!
Ele levantou a cabeça, depois o corpo, abandonou sua obra e continuou a caminhada ao nosso lado sem cerimônia. Nesta altura nós já nos preocupávamos se ele tinha fome e especialmente sede. Sabíamos que alimentá-los seria uma aproximação muito grande, porém o que fazer? A Milena pegou um pote com um suplemento que levou e que não usou, liberou o recipiente e dividimos nossa água com ele. Só que para nossa decepção ele não quis tomar nossa água….como assim?? Que desfeita pensamos!
Logo mais a frente a nossa direita tinha um córrego e formava uma poça d’água, nosso companheiro mergulhou, bebeu daquela água, se refrescou e nós ficamos lá felizes com a alegria dele! Nos perguntamos, será que ele sabia que tinha essa fonte de água e por isso recusou a nossa?
A gente conversava com ele. Imaginem duas mulheres que gostam de falar, achamos o cara perfeito para tagarelar sem parar, afinal ele não reclamava e de vez em quando usava a estratégia masculina de fingir uma surdez momentânea.
Como a gente tinha tempo resolvemos escolher um nome para ele, num momento de descanso testamos todos os nomes possíveis para um cão do seu estilo…a gente usou a criatividade começando por Pelé rsssss e passamos por diversos nomes e ele prestava atenção, mas não de um jeito de quando você acerta, até o momento que deu um sono e ele dormiu profundamente.
Acorda Peregrino!! Falamos sem pensar, saiu assim naturalmente , ele se levantou no mesmo momento e balançou o rabo tão rápido. Encontramos um nome para ele que felicidade!!!! Peperereperepepe… Peperereperepepe….. Peperereperepepe, seguimos cantando.
Cão Peregrino, você é o nosso guardião enquanto caminharmos juntos, você é um anjo enviado por Deus para nos acompanhar, duas mulheres no Caminho da Fé, com certeza ele era um anjo que em algum momento iria embora sem despedidas.
Agir dessa maneira deu uma leveza, não tinha planos afinal, cada bom dia e boa noite eram tratados com exclusividade, coisa que eu queria levar para meu trabalho e na minha vida pessoal. Foi assim que entendi a beleza de cada momento sem querer advinhar o futuro ou forçar para que as coisas aconteçam.
Foram 170 quilômetros na companhia do Cão Peregrino, no Caminho encontramos muita generosidade para com ele, em várias hospedarias ele foi recebido tão bem e com tanto amor e ele retribuia com sorrisos, pulos e latidos de alegria.
Quando a gente achava que as surpresas haviam terminado conhecemos a francesa Emmanuelle, foi um desafio nos comunicarmos com ela, era nosso desafio e o dela também. Formamos um quarteto a partir de Campos do Jordão até Aparecida.
E o futuro do Cão Peregrino? O que acontecerá depois da nossa chegada a Aparecida? Essas dúvidas começaram a nos assombrar conforme nos aproximávamos, mas a gente não estava tão bem deixando a vida acontecer?
Orai e Vigiai.Temos que ter consciência da nossa fraqueza, uma luz acendeu nestes quase 15 dias de peregrinação, porém era um exercício que não acabava ali, era preciso confiar na providência.
No último dia de percurso, liguei para o meu marido, ele sabia da história do cão, porém em nenhum momento havia me encorajado a adotá-lo, muito pelo contrario. Porém naquele dia ao ligar, ele me perguntou sobre o que faríamos com o cachorro, eu respondi que ainda não sabíamos a resposta, a única coisa que tínhamos certeza que não o deixaríamos em Aparecida. Então foi quando ele me falou: se seu coração disser que você deve levá-lo para casa, você está livre para escolher, eu vou até Aparecida buscar vocês se for essa sua decisão.
Naquele momento um filme passou pela minha cabeça, o quanto a compahia dele me fez bem. Ele me ensinou a apreciar o caminho, ele me despertou o sentimento de viver o momento, ele me deu o propósito que eu tanto precisava.
O meu marido não precisou sair de São Paulo para nos buscar em Aparecida. Um ‘biciclino’ chamado Carlos que nos conheceu no Caminho, acompanhou nossa chegada pelas mídias sociais me mandou uma mensagem se oferecendo para nos levar até São Paulo. Tudo isso aconteceu no último dia, na chegada a Casa de Nossa Senhora Aparecida.
Hoje tenho a alegria da sua companhia, em casa descobrimos o quanto o Cão Pegrino pode nos ensinar. Todas as vezes que fico ansiosa, preocupada ou desapontada, tenho nele um alerta para não desviar do Caminho, não forçar um acontecimento e sim agir com mais leveza e gratidão.
Ah! Sabem aquele meu Cajado Bambu? Pois é, ele virou extensão do meu corpo, tão importante para mim que absurdamente certa vez eu o esqueci em uma de nossas paradas. Fui me dar conta uns dois quilômetros depois, sentia que algo me faltava, eu não tive nenhuma dúvida em retornar para buscá-lo e fiquei rezando para estar lá! A Milena, a Francesa e o cão Peregrino ficaram me esperando junto com a minha mochila. Foram quatro quilômetros para resgatá-lo!
As vezes a gente deixa de abrir aquela garrafa de vinho, estourar aquele espumante, pedir perdão, dar aquele abraço, dizer o quanto amamos, contemplar a paisagem porque estamos a espera do grande momento, da grande conquista e deixamos de viver o agora!
SOBRE O CAMINHO DA FÉ
Maior trilha para peregrinos do Brasil, o Caminho da Fé foi inaugurado em 11 de fevereiro de 2003, em Águas da Prata (SP). Inspirado no Caminho de Santiago de Compostela, tem uma rota de 970 quilômetros, dos quais aproximadamente 500 atravessam a Serra da Mantiqueira, em um trajeto que leva os peregrinos a pé, de bicicleta ou cavalo até o Santuário Nacional de Aparecida, o maior santuário mariano do mundo, localizado no Vale do Paraíba (SP).
Desde sua inauguração, cerca de 35 mil pessoas percorreram o percurso, sendo 6 mil delas em 2016. Além de integrar o homem à natureza, o caminho tem contribuído para o desenvolvimento econômico e social das cidades para as quais as setas amarelas indicativas levam os peregrinos de todo o mundo, permitindo ainda uma rica integração cultural entre moradores e quem está de passagem.
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