Era uma manhã de quarta-feira. Havia espaço na minha agenda e aproveitei para prestigiar a arte jundiaiense. Fui para a Pinacoteca de Jundiaí, na rua Barão, espaço que antigamente era uma escola e hoje recebe obras diversas, carregadas das nuances dos olhares de artistas da região ao longo dos últimos séculos. Escolhi aquele destino para admirar arte e foi um grande prazer contemplar cada peça que traz um detalhe dos modelos, como num ‘zoom’(Foto principal: ‘Reflexo de Si). A Pinacoteca fica naquele exuberante edifício amarelo-claro – assim como contemplá-lo em si. Afinal, a construção do fim do século XIX é tão impressionante quanto as obras que abriga. Mas confesso: saí de Campo Limpo Paulista já pensando especificamente na nova exposição de Catendê Sarti.
Sabia que, nesse projeto, algumas das pessoas retratadas eram conhecidas minhas. Entre elas, Samy Fortes, grande ativista em prol de comunidades minorizadas, que, neste Mês da Mulher, foi homenageada com o Diploma Mulher-Cidadã “Clara Zetkin”, tornando-se a primeira mulher trans a recebê-lo. Eu queria muito ver uma representação da Samy em um lugar que sempre lhe foi devido: na parede de um espaço expositivo de tal relevância, em uma grande tela pintada a óleo. Ainda mais por ela ter sido graduada em Artes Visuais e entusiasta da arte até o fim de sua vida.

Por meio de um projeto contemplado pela Lei Paulo Gustavo, Catendê realiza a primeira exibição na Pinacoteca de Jundiaí. Ele traz, de forma pioneira, a exposição “Transmutare Humanum Est”, que, traduzindo do latim, significa “Transmutar é Humano”. Com essa série de obras, o artista rompe estereótipos impostos à comunidade trans e se firma como o primeiro homem transmasculino da história de Jundiaí a ter uma exposição em um espaço público.
Segundo ele, o conceito da mostra gira em torno da inserção de corpos TT em um lugar distante da objetificação, enfatizando momentos de plena existência e escapando de narrativas reducionistas e rasas. Como bem pontua o texto curatorial, cada obra é “um depoimento eternizado da capacidade de transformação, da resiliência e da alegria de habitar sua própria verdade”.
Ao prestigiar a exposição, pude sentir isso em cada milímetro de tela que meus olhos percorreram. De imediato, ficou claro o imenso potencial desse artista. Cada quadro ecoa pela sala ampla a retomada de narrativas, e Catê (apelido carinhosamente atribuído a ele), com cada pincelada, conta a história dessas pessoas com a propriedade e a sensibilidade de quem vive diariamente essa luta.
Falando em pinceladas, preciso enfatizá-las. O que vi naquela histórica sala expositiva me fez perceber como Catendê as usa de forma sagaz, aproveitando cada traço para evidenciar as diferentes histórias ali representadas. Ao transitar entre as obras, percebi que ele possui um traço raro nas artes plásticas: consegue manter uma identidade visual bem definida, mesmo alternando as movimentações do pincel e explorando estilizações diversas. Ele compreende a importância do volume e da textura, trabalhando esses elementos de maneira intencional nos traços dos modelos, especialmente na representação da pele e do cabelo. Mas é na vestimenta que ele realmente se destaca.
Para a comunidade LGBTQIA+, a autoexpressão por meio da edumentária é um dos maiores mecanismos de reafirmação que temos – é parte intrínseca da nossa identidade. E Catendê, ao evidenciar as texturas e volumes dos tecidos, capta essa essência com maestria. Seu trabalho transmite não apenas a identidade de quem retrata, mas também a energia pessoal de cada um, como se compreendesse exatamente quem é ao mesmo tempo em que entende quem está pintando. Mais do que transmutar, ele capta as nuances de cada narrativa e enfatiza o espírito de seus modelos, pintando cenas cotidianas carregadas de subtexto, ainda que brando e confortável de se admirar.
Aparentemente, o artista também possui uma base teórica em psicologia e teoria das cores. Ele trabalha com tons predominantemente frios, como verde-oliva e lilás, e gosto de pensar que entendi sua motivação. Os fundos, na maioria das telas, são sóbrios e escuros, o que, em minha interpretação pessoal, funciona como um recurso para centralizar a atenção do espectador na pessoa retratada.
Dentro de sua abordagem, que busca naturalizar essas vivências em contextos corriqueiros, o uso de tons suaves – frequentemente associados à calma – parece conceder a esses indivíduos, que vivem em constante estado social de alerta, um breve momento de paz. Um refúgio. Algo raro de se obter quando se vive no país com o maior índice de crimes de ódio contra a comunidade TT há anos consecutivos. Catendê construiu ali um templo de apreciação. Um espaço que convida o público a imaginar um futuro onde todas as pessoas trans possam existir em tranquilidade – seja se maquiando em casa, trabalhando salvando vidas ou escrevendo uma poesia na praça, como retratado em “Reflexo de Si”, “A Heroína” e “O Poeta”.
A exposição foi inaugurada no dia 18 de março e permanecerá até 14 de abril – praticamente um mês de mostra, o que já é um grande motivo de celebração. Estamos falando de um ponto de vista artístico inédito em um espaço como esse, em toda a história da cidade. E acredito que todo entusiasta da arte se interessa por novas perspectivas. Além disso, há também o prazer de frequentar a Pinacoteca. Entre as exposições fixas, que exaltam artistas fundamentais para Jundiaí – como Diógenes Duarte Paes, maior aquarelista do Brasil nos anos 50 e criador da bandeira da cidade, e Inos Corradin, pintor renomado com exposições na Europa –, agora temos também Catendê Sarti.
Mesmo diante das dificuldades de construir um projeto de edital cultural, desenvolver as obras e viabilizar a exposição, ele conseguiu. E praticamente sozinho. Estamos falando de um artista que, ainda jovem, alcançou uma sala inteira dedicada à sua arte no mesmo edifício onde nomes que expuseram no Salão Nacional de Arte Moderna (como Inos Corradin, em 1953) já tem destaque.
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Por fim gostaria de enfatizar que a arte documenta a passagem do tempo, e, neste momento, a Pinacoteca nos permite vivenciar isso de perto – e de graça. No mesmo andar onde vemos obras que representam a Jundiaí de décadas atrás, temos agora a representação de quem habita essa cidade hoje. E, o melhor, sob a ótica de alguém que tem propriedade para contar essa história.
Convido você a fazer como eu: dedique um tempinho para apreciar a arte visual local. Não é todo dia que temos o privilégio de ver exposições tão diversas em um mesmo espaço cultural. E, um conselho de amiga: aproveite enquanto a arte de Catendê Sarti está por aqui. Porque, se eu puder apostar, diria que logo ele será descoberto por mais gente e, assim como outros grandes artistas locais já fizeram, terá sua arte atravessando fronteiras.

ANNA CLARA BUENO
De nome artístico Anubis Blackwood, é drag queen, artista performática e visual, professora de inglês, palestrante e produtora cultural. É membro do coletivo Tô de Drag, o primeiro de arte drag de Jundiaí e região. Colabora com o ‘Grafia Drag’, da UFRGS. Produz o festival Drag Vibes em colaboração com o coletivo, para democratizar a arte drag, mostrar sua versatilidade e levá-la a espaços e públicos novos por meio de performances plurais e muito diálogo.
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