ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS

coincidências

Alguns momentos de folga(ou de desvio de atenção aos grandes assuntos da Vida), dou-me ao direito de ficar fazendo algumas comparações, só para não acreditar que tudo seja tão suave ou leve quanto parece e para me assegurar que nem tudo são apenas estranhas coincidências. A Copa do Mundo, neste 2022, não me atraiu atenção por razões que me parecem óbvias, apesar de ser brasileiro e não abrir mão disso.

Sim, cada um tem seus olhares e cada um tem suas escolhas que chegam a custar caro; esta, por exemplo, me causa olhares de desprezo dos que me questionam. Ou me isolam ao responder ao questionamento de companheiros que se intrigam com o fato de eu não estar de verde-amarelo ou estar na ansiedade do próximo jogo. Pois é, parece-me que sou obrigado a pensar como todos e a agir no padrão convencional, mas não vou me deixar levar pelos gostos dos outros: não forço a nada e não me deixo forçar.

Esta vez, talvez porque a “reclusão Covid” tenha me avivado alguns princípios dos quais prefiro mantê-los a me tornar mais um no rebanho ensandecido que deixa de perceber particularidades pouco convencionais no mundo dos civilizados, permaneço à distância, observando. E estas estranhas coincidências me fazem estar arredio a todo movimento que se agita no clima de Copa do Mundo.

Vamos pelo princípio: sim, os estádios são majestosos, mas a mídia europeia trouxe informações dando conta da morte de mais de três mil operários, repatriados para trabalhar na construção civil do país em obras esportivas que receberiam o evento. E, aqui, por uma ou outra morte fora do país, se faz passeata dizendo que “vidas importam”. Será, mesmo, que importam? Ou importam vidas que meu protesto me dará notoriedade? Vidas distantes e desconhecidas, de trabalhadores braçais são menos importantes que aqueles que motivaram nossos protestos?

Comentamos sobre a liberdade de expressão e da masculinidade tóxica, mas achamos natural que o país sede tenha hábitos e ações muito excludentes (ainda que sejam questões culturais). Mulheres podem ir ao jogo, desde que autorizadas pelos maridos; enquanto aqui lutamos para uma ampliação de direitos, aceitamos tranquilamente os costumes estrangeiros, sem pensar muito. Mas, aqui a mulher está plenamente livre? Aqui a mulher tem total liberdade de ação? Esses aumentos de feminicídios que percebemos na sociedade, da mais culta a mais desarticulada não significa nada? Numa visão rasteira, é coincidência que chama?

Estamos vivendo outro momento muito complicado no Brasil: o da intolerância religiosa. Entretanto, para aqueles lados da Copa, isso é algo inegociável, assemelhando-se ao que vivemos, coincidentemente. A destruição de templos, a perseguição aos adeptos de cultos que não representam segmentos ortodoxos e que se sentem majoritários é uma prática que temos visto crescer em nosso país, cristão, mas relativamente selvagem, quando se fala em crença. Alguns grupos se colocam como mensageiros especiais de alguma divindade que lhes deu o poder de destruir, queimar e perseguir espaços de cultos de matrizes africanas ou machucar seguidores destes segmentos. Mas discordar da crença alheia é outra pequena coincidência.

Avançando pela mesma trilha das coincidências, temos visto que, no Brasil, cresce assustadoramente a desordem social, motivada pela defasagem econômico-financeira. Temos cada vez mais distanciamento em duas classes: a rica e a pobre. A classe média está num limiar próximo a extinção e a semelhança com o país que sedia a Copa, onde os ricos são exageradamente ricos e os pobres…bem os pobres sobrevivem para aumentar a riqueza dos demais. Sim, há toda uma diferença de contexto e de cultura, mas são coincidências que gritam aos olhos atentos de quem busca verificar propostas de igualdade social (que ficam em propostas, semse transformar em ações).

Muitas outras estranhas coincidências acontecem ou parecem acontecer, porém não vejo ninguém dando conta delas. Cria-me espanto tantas semelhanças em sociedades tão distantes e com tantas diferenças, ainda que não acredite nessas coincidências: penso que vivemos um espelhamento e, ao mesmo tempo, um distanciamento entre grupamentos de pessoas de culturas diferentes mas, de uma maneira bem explícita, com tantos pontos comuns.

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Desta Copa, levo a saudável alegria por descobrir que o Richarlison, o Pombo, mantém uma casa para familiares de pessoas com câncer se hospedarem, enquanto seu ente querido estiver em tratamento, no hospital, em Barretos. Fato que veio a publico agora, mas que foi uma meta estipulada por ele, diante do sofrimento alheio. Gesto humanitário pouco visto em nosso pobre país. Talvez outros mais cotados façam algo semelhante ou de maior impacto, mas este gesto emblemático marcou a trajetória deste jovem.

Tal como a situação do Messi, nosso rival eterno: avesso à farra, culto, totalmente família e espiritualizado sem fanatismo. Distante de farras e de ‘marias-chuteiras’, sempre acompanhado da família em aparições públicas e bem articulado com grupos cultos e atuantes, na Europa. Diferentes de outros boleiros que se engajam propostas de vida de ostentação e festinhas pouco recomendadas. Questões de escolhas. Relíquias que a Copa explicitou. Apenas não quero acreditar que tudo seja apenas estranha coincidência.(Foto: alambrado.net)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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