Em julho de 2025, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 35 anos. Um marco histórico que transformou a forma como o Brasil enxerga a infância: não mais como objeto de tutela, mas como sujeito de direitos. O ECA consagrou o princípio da prioridade absoluta — ou seja, crianças e adolescentes devem estar no centro das políticas públicas, com proteção integral garantida pelo Estado, pela sociedade e pela família. Mas o que isso significa na prática? E como está Jundiaí diante desse compromisso?
A cidade tentou se afirmar como “Cidade das Crianças” durante a administração passada, que investiu em espaços temáticos e campanhas institucionais para consolidar essa imagem. No entanto, a tentativa de colar esse título na identidade da cidade não se sustentou na realidade. E o mais preocupante: a nova administração, até agora, também não fez nada concreto para honrar esse compromisso.
Educação Infantil: a fila que não acaba – Jundiaí tem hoje centenas de crianças fora da creche pública, mesmo com promessas de universalização. A solução encontrada pela gestão anterior foi terceirizar parte da demanda para escolas particulares conveniadas, gerando um custo milionário e, ainda assim, mantendo filas de espera. Isso não é prioridade — é improviso.
Segundo dados da própria Prefeitura, cerca de 2.900 crianças foram encaminhadas para escolas conveniadas, com um custo mensal superior a R$ 3 milhões. Ainda assim, mais de 180 crianças seguem na fila, aguardando vaga. O acesso à educação infantil, que deveria ser garantido desde os primeiros anos, continua sendo um privilégio — não um direito universal.
Inclusão escolar: promessa não cumprida – Outro ponto crítico é a falta de professores de apoio para crianças com deficiência ou neurodivergência. São mais de 1.100 alunos que precisam de acompanhamento, mas menos da metade tem acesso a esse suporte. O resultado? Crianças excluídas, mães desesperadas, e uma rede de ensino que não consegue garantir inclusão real.
A ausência desses profissionais compromete não apenas o aprendizado, mas também a segurança e o bem-estar dos alunos. Em muitos casos, crianças com autismo ou outras condições são deixadas sem acompanhamento, o que pode gerar crises, evasão escolar e sofrimento psicológico.
Cultura e lazer: para quem pode chegar – O Mundo das Crianças e a Fábrica das Infâncias Japy são espaços belíssimos, com propostas pedagógicas inovadoras. Mas não chegam às crianças da periferia. Falta transporte, falta segurança, falta descentralização. O direito ao brincar, ao imaginar, ao pertencer — continua sendo privilégio de poucos.
A cidade ainda carece de políticas efetivas de descentralização cultural, com muitos bairros sem equipamentos adequados. A infância não pode depender da capacidade da família de se deslocar até o centro ou até o parque temático. É preciso levar cultura e lazer onde as crianças estão.
Violência e escuta especializada: um silêncio perigoso – Mais grave ainda é o cenário da violência contra crianças e adolescentes. Jundiaí está praticamente sem serviço estruturado de escuta especializada, previsto por lei para acolher vítimas de abuso sexual. O atendimento é pontual, limitado, e não cobre toda a rede. Enquanto isso, crianças continuam sendo revitimizadas por procedimentos inadequados, sem o cuidado que merecem.
A Lei nº 13.431/2017 determina que toda criança vítima de violência deve ser ouvida por profissionais capacitados, em ambiente seguro, com metodologia adequada. Em Jundiaí, esse serviço está restrito ao Hospital Universitário, sem equipe suficiente e sem articulação com a rede de proteção. Isso é grave. Isso é negligência institucional.
O papel do CMDCA: fiscalizar, cobrar, garantir – Diante desse cenário, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) deveria ser protagonista. Criado pelo ECA, o CMDCA tem a função de deliberar, controlar e fiscalizar as políticas públicas voltadas à infância e adolescência. É ele quem organiza o processo de escolha dos conselheiros tutelares, acompanha os programas sociais, registra entidades e cobra do poder público o cumprimento das metas.
Segundo o artigo 139 do ECA, o CMDCA é responsável por garantir que os Conselhos Tutelares funcionem com autonomia, estrutura e capacitação. Também deve gerir o Fundo Municipal da Infância e Adolescência (FIA), que financia projetos sociais. Mas em Jundiaí, o CMDCA tem atuado de forma tímida, muitas vezes invisível.
A sociedade civil precisa ocupar esse espaço. O CMDCA deve ser plural, participativo e fiscalizador. Precisa ouvir as comunidades, cobrar da prefeitura, denunciar omissões. Sem isso, o sistema de garantia de direitos fica fragilizado — e quem paga o preço são as crianças.
Comitê das Crianças: escuta simbólica ou real? Jundiaí tem um Comitê das Crianças, formado por meninas e meninos que participam de reuniões e sugerem ideias para a cidade. A iniciativa é louvável, e coloca em prática o princípio da escuta ativa. Mas é preciso ir além da simbologia.
De que adianta ouvir as crianças se não há vaga na creche, apoio na escola, acesso à cultura ou proteção contra violência? A escuta precisa ser transformada em ação. O Comitê deve ser fortalecido, articulado com o CMDCA e com os conselhos tutelares. E suas propostas devem ser incorporadas ao orçamento público — não apenas celebradas em eventos.
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35 anos do ECA: o que Jundiaí precisa fazer – O ECA é mais do que uma lei: é um pacto civilizatório. Aos 35 anos, ele continua sendo um instrumento essencial para garantir que cada criança e adolescente tenha acesso à educação, saúde, lazer e proteção. Mas para que seus princípios saiam do papel, é preciso compromisso coletivo — da família, da sociedade e do Estado.
Jundiaí, se quiser honrar o título de “Cidade das Crianças”, precisa:
- Zerar a fila de creches públicas, com vagas de qualidade e equipe completa.
- Garantir apoio especializado para todas crianças com deficiência ou neuro divergentes.
- Descentralizar o acesso à cultura e lazer, levando atividades aos bairros periféricos.
- Estruturar o serviço de escuta especializada, com equipe multidisciplinar e fluxo integrado.
- Fortalecer o CMDCA, com participação ativa da sociedade civil e fiscalização efetiva.
- Integrar o Comitê das Crianças às decisões reais da cidade, com orçamento e ação.
Infância não é marketing – Infância não é tema decorativo. É urgência. E Jundiaí, se quiser ser de fato a Cidade das Crianças, precisa começar por reconhecer suas falhas e colocar a infância no centro das decisões, não apenas no topo das campanhas publicitárias.
A cidade tem potencial, tem estrutura, tem iniciativas promissoras. Mas precisa de coragem política, escuta verdadeira e ação concreta. Porque criança não pode esperar. E o ECA, 35 anos depois, continua sendo o farol que aponta o caminho — mesmo quando a cidade insiste em andar na contramão.(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

REINALDO FERNANDES
É assistente social, pós-graduado em docência no curso superior e em Gestão em Políticas Públicas, tutor presencial na Faculdade Anhanguera, membro titular do CMAS, com experiência em políticas públicas, diversidade e inclusão social. Foi o primeiro coordenador dos Direitos das Pessoas com Deficiência em Jundiaí”.
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