Fazer parte de um grupo de minorias não nos isenta de perpetuar antipatias e ações ignorantes a outros indivíduos. Às vezes, podemos reproduzir discursos de ódio até mesmo contra quem compartilha pautas semelhantes às nossas. Ícones também fazem isto e quando isto ocorrem, precisam se retratar.
Há inúmeros exemplos que poderia citar: mulheres brancas feministas que ignoram a luta das mulheres negras; pessoas LGB(lésbicas, gays e bissexuais) que são preconceituosas com pessoas T(transexuais) ; ou ainda, pessoas negras que invisibilizam os povos originários dentro da luta antirracista.
Este último caso veio à tona em uma situação recente que, para muitos, pode parecer irrelevante. Durante sua nova turnê, Cowboy Carter, Beyoncé usou em um show uma camiseta do próprio merchandising dela. A peça traz uma ilustração e o título “Buffalo Soldiers”. Para nós, brasileiros, isso pode não significar muito, mas para quem nasceu nos Estados Unidos, a referência carrega um peso histórico.
Os Buffalo Soldiers eram regimentos do Exército dos Estados Unidos compostos exclusivamente por soldados afro-americanos, formados no século XIX para atuar na fronteira americana. Se você é fã da Beyoncé e acompanha sua nova fase artística — que exalta a presença da cultura negra no country, além de se posicionar como uma afirmação antiracista —, é possível que tenha enxergado essa camiseta como um gesto subversivo e empoderador para os não-brancos.
Acontece o problema é mais complexo ao redor dessa estampa.
Como pontuou a artista e ativista indígena Katú Mirim, criada na região de Campo Limpo Paulista e pertencente ao povo Boe Bororo (do Mato Grosso), a camiseta traz uma mensagem ofensiva aos povos indígenas e mexicanos.
Ela enfatizou que:
“Não se trata apenas de moda ou estética: essa estampa é símbolo do silêncio diante do sofrimento indígena. Não podemos naturalizar narrativas colonizadoras vestidas como empoderamento.”
A peça traz a seguinte frase na parte de trás:
The Buffalo Soldiers were tasked with defending the American frontier, engaging with hostile forces including Native American warriors and Mexican revolutionaries — viewed by settlers as enemies of peace, order, and expansion.
Em tradução livre:
Os Buffalo Soldiers foram encarregados de defender a fronteira americana, enfrentando forças hostis, incluindo guerreiros indígenas e revolucionários mexicanos — vistos pelos colonos como inimigos da paz, da ordem e da expansão.
A estampa foi interpretada como uma romantização da colonização americana e do genocídio dos povos originários. O uso da palavra “hostis” e a definição desses povos como “inimigos da paz” reforça uma perspectiva colonizadora, perpetuando a lógica de opressor versus oprimido.
Katú Mirim escreveu em suas redes sociais que essa camiseta não é apenas um item de vestuário, mas um símbolo claro de como até mesmo ícones da luta antirracista podem ecoar discursos colonizadores e desrespeitar o sofrimento indígena. Ela, como tantos outros ativistas indígenas na América do Norte, cobra não apenas a retirada do item de circulação (o que já ocorreu discretamente), mas também um pedido público de desculpas e o compromisso com reparação simbólica.
A indignação aumenta ao redor de ativistas indígenas diante do silêncio de Beyoncé até o momento. E aqui faço um parêntese necessário: menciono o nome da artista porque, no meu universo, Beyoncé é tratada como uma deusa pop contemporânea. É um dos nossos ícones. Sei que muitos fãs talvez se irritem ao ler críticas a seu comportamento — reações típicas quando colocamos alguém em um pedestal mais alto do que é humanamente possível. Mas é justamente esse o ponto: quando admiramos alguém, precisamos estar ainda mais atentos às suas contradições. Não é sobre demonizar, parar de admirar ou invalidarr tudo o que foi construído por esse indivíduo, é apenas sobre estar aberto para o fato que, até mesmo quem a gente mais admira pode sim errar. Se a intenção da artista foi trazer à tona a história americana contraditória de forma crua, que houvesse algum tipo de contextualição, e mesmo assim, ela ainda estaria ganhando mais dinheiro com a venda se um produto que sim, exibe frases que afirmam um povo indígena hostil. Sendo uma escolha de marketing, algo que não partiu dela inicialmente, ainda cai sobre seu nome.
Não podemos passar pano para quem sai em defesa de uma causa enquanto silencia-se diante da dor de outros grupos igualmente racializados. Espero, sinceramente, que Beyoncé se retrate. Porque não se trata só dela — trata-se dos 311 milhões de seguidores que a escutam e a seguem nas redes, que podem aprender um pouco mais com isso.
Infelizmente, não é a primeira vez que a imagem da artista se vê envolta em uma polêmica do tipo. Em 2016, sua marca de roupas Ivy Park, lançada em parceria com a Topshop, foi acusada de utilizar mão de obra análoga à escravidão no Sri Lanka. Na época, enquanto a campanha publicitária exaltava o empoderamento feminino, investigações revelaram que a maioria das trabalhadoras, mulheres não brancas, se encontravam em condições degradantes, recebendo cerca de 4 libras por dia de serviço e privação de liberdade. E naquela vez, Beyoncé permaneceu em silêncio, havendo apenas uma nota da marca alegando ter programa ético, auditorias, inspeções constantes – sem comprovações apresentadas até hoje.
O que mais me preocupa é a facilidade com que o público esquece. A maioria dos milhões de seguidores de Beyoncé parece ter deixado essa denúncia de 2016 no passado. É esse esquecimento coletivo que desejo evitar agora.
Aqui no Brasil, também convivemos com o apagamento dos povos originários de forma constante. Por exemplo, mais de 70% dos municípios brasileiros têm nomes de origem indígena. Jundiaí é um deles. No entanto, quantas vezes paramos para refletir sobre a presença e resistência dos povos indígenas nesta região? Quantas escolas trabalham, de fato, com a história e a cultura dos povos originários de forma consistente, que não passe de um artesanato falho e estereotipado toda vez que chega “O Dia do Índio”? O problema não é só nos Estados Unidos, ele está em todo lugar.
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Segundo dados do IBGE (Censo 2022), o Brasil tem hoje cerca de 1,7 milhão de pessoas indígenas, pertencentes a mais de 300 etnias. Ainda assim, enfrentam cotidianamente a negação de seus direitos territoriais, o silenciamento cultural e o racismo estrutural, além de muitas vezes não serem devidamente lembrados ao se falar de genocídio histórico. Em Jundiaí, mesmo sem uma grande população indígena autodeclarada, a presença ancestral está em cada pedra, rio e nome de bairro — mas continua invisível aos olhos da maioria.
Se a luta é por justiça social, ela precisa ser completa. Não podemos combater o racismo exaltando símbolos que violentaram outros grupos racializados dessa forma. Não podemos lutar contra o machismo sem incluir todas as mulheres, de todas as classes. Ativismo não pode ser seletivo. E qundo erram, ícones precisam se retratar.(Foto: Oh No They Didn’t/LiveJournal)

ANNA CLARA BUENO
De nome artístico Anubis Blackwood, é drag queen, artista performática e visual, professora de inglês, palestrante e produtora cultural. É membro do coletivo Tô de Drag, o primeiro de arte drag de Jundiaí e região. Colabora com o ‘Grafia Drag’, da UFRGS. Produz o festival Drag Vibes em colaboração com o coletivo, para democratizar a arte drag, mostrar sua versatilidade e levá-la a espaços e públicos novos por meio de performances plurais e muito diálogo.
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