O tema da liberdade de expressão sempre rondou a sociedade. Sócrates, por exemplo, foi condenado à morte por suas ideias transgressoras ditas nas praças da antiga Grécia. De lá pra cá, como tantos temas de valores éticos que fundam as relações sociais, muda-se o cenário e seu contexto, mas os dilemas permanecem. No Brasil de hoje, em pela votação da atualização do Marco Regulatório da Internet, em que se discutem mecanismos para regulamentar as redes sociais a partir da mediação consistente, por parte das big techs, de conteúdos criminosos que circulam livremente, explodem em nossas telas notícias como a prisão midiática de um MC que usa suas letras para falar da realidade da favela onde a venda de drogas está inserida – sob alegação de apologia ao crime – e a condenação de um humorista por, em seu espetáculo de stand up viralizado no Youtube, cometer crime de racismo e ofender minorias diversas. A pergunta que permanece é: até onde é possível compreender a liberdade de expressão como valor basilar da democracia e o limite que dela se ultrapassam, seja sob o pretexto do recurso da arte ou da expressão de opiniões que têm poder de distorcer valores e vidas, mas que geram engajamento e lucro gigantescos?
Deixando de lado, aqui, os bilionários que brigam por minimizar a moderação de conteúdo nas redes, vou me atentar à questão da cultura e do humor, visto que ela acende a polarização e a “compra” de opiniões a partir de discursos e narrativas prontas dentro dos seus vieses confirmatórios. Como professora e psicóloga que estuda a Psicanálise, que tem como base clínica este valor intrínseco da democracia que é a liberdade de expressão, é impossível não parar para pensar na dimensão social e política que este tema nos impõe.
A Psicanálise, no setting terapêutico, utiliza-se de um conceito e técnica chamada associação livre, o que significa um espaço de liberdade de expressão radical para o analisando. Ele, com a ajuda da transferência com o analista e a interpretação, passa a acessar mais profundamente seu próprio modo de ser e de estar na sociedade, bem como seus sintomas e sua própria história, sempre atravessada pela cultura. Inevitavelmente, no entanto, há resistências para que aconteça a associação livre, como a repressão de pensamentos e desejos que podem não estar afinados com a moral social dominante que vivemos. Por isso a associação livre é uma conquista dentro do setting.
Na sociedade, no entanto, a repressão também é tida como uma conquista necessária (não completa, diga-se… Como é possível tornar uma criança pulsional em um ser totalmente adequado sem que guarde conteúdos reprimidos?). Numa sala de aula, temos que permanecer sentados e adequados, não interferimos na fala dos professores e colegas a qualquer tempo, por exemplo. Perante a sociedade, aprendemos e seguimos as normas e regras, mas reprimimos um tanto de nós nesse processo.
Há, para a psicanálise, diversas formas de conteúdos reprimidos virem à tona, e uma delas é, por exemplo, pela piada. O psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP, Daniel Kupermann, em uma de suas conferências, conta que a piada, de acordo com Freud, tem um circuito de prazer que envolve três sujeitos: quem faz a piada, o alvo dela e o público. Uma piada somente se consome se há ressonância deste público. No sujeito que ri, há algo dele que suscita, neste momento efêmero, uma satisfação (geralmente de cunho sexual e agressivo), algo que emerge daquilo que está nele recalcado. Em uma piada, é necessário haver o riso do outro, esse laço afetivo que reforça que as formações do inconsciente têm atravessamentos sociais – de classe, gênero, raça.
O humor, diferentemente da piada, tem outro canal de atravessamento. Ele pode ser uma das saídas que o sujeito encontra em seu processo analítico. O humor pode transformar os afetos aflitivos em prazer na medida em que o sujeito encara suas próprias vulnerabilidades e consegue rir de si mesmo. O humor é uma maneira de reconhecer e fazer rir da fragilidade da condição humana, de toda uma pretensão de onipotência. O que suscita, no lugar do recalque, é algo da ordem do reconhecimento de si e da cultura.
Dentro de um contexto artístico, com um público determinado, o humor tem o poder de acessar esses simbolismos, mas de um jeito capaz de provocar, a partir do ineditismo do riso, alguma mudança sutil e até inconsciente: que seja uma rebeldia, novos modos de compreensão da realidade ou de socialização. Vale-se considerar, neste caso, quem pratica o humor neste contexto e quem é o seu público, para que haja esta identificação.
Por outro lado, há quem se utilize de sua posição em determinado momento, como o palco, para tripudiar adversários, humilhar, ofender, avacalhar pessoas, grupos, situações – dos quais, muitas vezes, o próprio autor não faz parte. O público não se identifica com quem conta a piada, mas com o que a piada gera em si.
Vivemos em uma sociedade segregadora devido a interesses de poder diversos. A letra de um MC que fala de seu próprio contexto social encontra ressonância em seu público cativo (desagradando outros, descontextualizados obviamente). Pela identificação, ele pode gerar pensamentos em quem a consome e contribuir com reflexões sociais muito mais do que causar uma idolatria – aquela típica de quem busca uma autoridade para obedecer.
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Piadas racistas e ofensivas a grupos minoritários, que espremem subjetividades a rirem até mesmo de situações de pedofilia, também encontram identificações, como falamos aqui. A questão é que promovem a naturalização de preconceitos e crimes até mesmo de forma inconsciente, especialmente nos que deixam escapar do riso uma satisfação recalcada.
O perigo aumenta quando piadas dessa natureza são deliberadamente disseminadas no mundo ainda sem lei das redes sociais, ressonando em larga escala preconceitos e ilusões de onipotência geradas pelo seu autor, que ao ser penalizado se coloca como vítima em nome da liberdade de expressão. (Foto: Анастасия/Pexels)

TATIANA ROSA
É psicóloga, pós-graduanda em clínica psicanalítica; pedagoga e jornalista. E-mail: rosa.ta@gmail.com , Instagram: @tati_psico
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