Mais que analisar estruturas textuais e linguísticas e interpretar escritos antigos, a Filologia como uma ciência humana pode nos surpreender e revelar “camadas existentes de uma sociedade” do passado. Foi o que ocorreu em um estudo que fez a transcrição de “Cartas de Datas”, uma espécie de escrituras da terra, de Jundiaí. Os documentos mostram como viviam as mulheres do século 17. Na época, em meio a pedidos de posse, viúvas, casadas e solteiras constavam entre as “suplicantas” de extensas áreas, dirigidas ao poder público da cidade. Os manuscritos antigos (1657), que datam do período colonial, estão hoje arquivados no Centro de Memória do município de Jundiaí, interior do Estado de São Paulo, e foram objeto de estudo da pesquisadora Kathlin Carla de Morais(foto acima), pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
As porções de chãos recebidas eram incorporadas ao redor da igreja matriz (hoje a Catedral Nossa Senhora do Desterro), região em que teria acontecido o possível início do povoamento urbano de Jundiaí. “Posteriormente, o proprietário ficava obrigado a fazer doações à Igreja e cuidar da entrada da propriedade, de modo a tornar possível a passagem de pessoas e animais grandes, como cavalos e bois”, conta Kathlin ao Jornal da USP, em texto assinado por Ivanir Ferreira.
Segundo o estudo, esse entrelaçamento de poderes religiosos, políticos e culturais pode ser explicado nesse período pelo fato de as câmaras municipais terem sido os órgãos reguladores de tudo o que acontecia na região. As diretrizes que seguiam eram inspiradas em fontes do sistema judiciário de Portugal, que tratavam sobre as relações do Estado com a Igreja e norteavam os processos civis e comerciais, tendo como base o direito romano e canônico. Este esquema de concessão de terras durou até o século 19 com a Lei de Terras (1850), que passa a usar o modelo de compra e venda para a aquisição de chãos.
Filhas e netas de pioneiros – A pesquisadora conta que algumas das solicitações de doações registradas foram feitas por mulheres do século 17, o que poderia indicar que já naquela época havia um certo empoderamento feminino. Elas são descritas na documentação como viúvas, casadas, filhas e netas dos primeiros povoadores. “Algumas delas entravam com o pedido de posse por mais de uma vez para expansão da área solicitada inicialmente”, destaca. Foi o caso da dona Agostinha Rodrigues, que foi três vezes à Câmara Municipal peticionar terras e teve todos seus pedidos aprovados. “Imaginamos as mulheres do século 17 eram reclusas e submissas, porém, os manuscritos mostram que algumas já estavam na vanguarda da sociedade jundiaiense e cumprindo um papel de liderança e poder na família”, explica.
Status social – As doações de terra em Jundiaí eram feitas por meio da Câmara, que contava com certa autonomia do ponto de vista jurídico, econômico e político. Pela distribuição das glebas, transferia-se da estrutura política para a social a responsabilidade daquele espaço no que toca sua proteção e cuidado, explica Kathlin. Para o requerente, receber terras era importante, uma vez que passava a ser visto como administrador de uma localidade, o que lhe dava certo status social na região, além de contribuir com a economia de subsistência e moradia.
Estruturas textuais – Sobre o termo “suplicante”, por exemplo, Kathlin encontrou uma variante interessante de designação e diferenciação de gênero. Embora as estruturas textuais dos documentos fossem bastante rígidas, o redator (escrivão) adotava uma variação linguística desse termo: usava-se “suplicantas” para mulheres e “suplicantes“, para homens.
A dissertação de mestrado ‘Damos aos suplicantes os chãos que pede’: edição fac-similar e semidiplomática e estudo do manuscrito Cartas de Datas de Jundiaí do século XVII foi defendida em 2018, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No momento, Kathlin continua trabalhando com a documentação de Jundiaí, desta vez do século XVIII, e espera poder encontrar mais dados que contribuam com várias áreas do conhecimento, como Linguística, Demografia, Geografia, História, entre outras.(Foto: istockphoto.com)
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