Mundão louco foi o termo que ela usou para o seu cotidiano. Conheço-a faz poucos meses mas, por sua transparência, parece-me que nos vemos há tempo. Embora tenha passado por lugares cinzas, carrega uma ingenuidade bonita na crença de que as pessoas não julgam, compreendem e abraçam. Infelizmente, não é assim. Precisa, como já lhe disse, usar de prudência.
Pelo que sei de sua história, foi empurrada, aos tropeços, para esse mundão louco, que a levou ao exílio em um país da Europa, traficada. Não foi fácil, depois de muitos anos, recuperar, sob ameaças, o passaporte para retornar. Como faltam oportunidades iguais para os filhos e as filhas de famílias empobrecidas. Como falta incentivo em algumas famílias: se houvesse, poderia ser hoje uma Irmã Clarissa.
Semana passada passou por momentos que lhe consumiram o equilíbrio. Por ter apanhado da vida e distinguir a dor das mulheres ameaçadas, sentiu-se no dever de ir ao velório de uma moça vitimada pela violência. Pelo que viveu, imaginou-se ali, levando com ela apenas as marcas digitais de brutos. Teve empatia pela mulher. Estava lá ainda, quando se deparou com o ex-sogro sendo velado. Imaginou ser um sinal do Céu, para que ela não se permitisse mais um relacionamento tóxico e nem ser explorada. O anterior foi assim. Comentou que os homens, que passaram por sua vida, não conseguem valorizar a mulher e quando a mulher encerra um vínculo, cansada de tantos desaforos, ainda se acham no direito de tirar sua vida.
Infelizmente, a medida protetiva deixa a desejar, porque o agressor, com raras exceções, já age assim por lhe faltar caráter. Uma medida protetiva não o intimida.
Sentiu medo por ter ouvido do ex-companheiro que a desejava morta. Chorou por todas as mulheres que neste mundão louco estão “perdendo sua vida na mão dos machistas”.
Entrou em pânico, pois na solidão a realidade fala mais alto. Deu de frente com ela mesma na verdade do seu ser só. Escorreu a ilusão de ternura por aqueles que usam seu corpo e vão embora e por quem usufrui dos seus ganhos.Dignidade não se compra. Recordou-se do frio que ela e outras meninas traficadas passavam, no inverno rigoroso, desnudas na porta do estabelecimento para atrair fregueses. Anônimas sociais em país estranho. Pediu a algumas pessoas, que considerava amigas, para passarem a noite com ela até que viesse o degelo de suas emoções, que a faziam tremer. Não veio ninguém. Teve que se aguentar sozinha. Escutou a oração de São Miguel Arcanjo para expulsar o mal de perto dela e para apaziguar o seu coração.
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DEPENDÊNCIA QUÍMICA E CONTÁGIO
Na noite de seu medo extremo, pretendia participar da Missa no Carmelo dos 40 anos pela Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena e 27 anos da Associação Maria de Magdala. Não conseguiu. Como repetia nosso pai: “O homem põe e Deus dispõe”. Se fosse, não concluiria que era necessário abrir mão definitivamente de quem poderia desintegrá-la. Apesar de sangrar por dentro, concluímos – ela e eu – que foi um aceno forte do Céu para protegê-la. Emocionei-me! Às vezes, o Senhor precisa nos lancetar para o pus escorrer. Senti forte a presença dEle com ela no acontecido.
Em faxina interior, no início da semana, me disse: “Aquelas pessoas que me veem somente com os olhos do mundo é porque não têm Deus no coração, por isso perderam para mim. Melhor tirar a presença delas em minha vida”. E acrescentou, “Nesse momento da minha prova, só oração para curar a alma”.
O Senhor não se perde do mundão a que ela se refere. Nele habitam filhos Seus.(Foto: Pikist)

MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE
Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de risco.
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