Não, este não é um conto de NATAL JUNDIAHYENSE…

NATAL JUNDIAHYENSE
Retirantes, quadro de Cândido Portinari, 1944. Meu texto não salvará a humanidade, mas quero que ele seja uma voz condutora para os relegados do mundo. Foto in: https://www.culturagenial.com/quadro-retirantes-de-candido-portinari/

Não, este não é um conto de Natal jundiahyense pode ser um incompleto momento autobiográfico que vivi recentemente; a proposta de ver esse período de outros ângulos; ou, talvez, uma simples confabulação que tive. Não sei ao certo. Só posso dizer que não suporto mais caminhar nas veredas da desigualdade nacional.

Eu adoraria desejar-lhes um feliz Natal ingênuo e dizer que tudo estará sempre bem; eu adoraria acreditar que as dores do mundo não conseguem ombrear com estes últimos dias do ano, onde esperança e caridade se unem; e eu adoraria dizer feliz ano novo de forma pronta, sem exigir-lhes uma reflexão mais profunda e, desse modo, cativar pela emoção e, claro, pelos frágeis discursos de autoajuda.

Mas coisas assim não combinam comigo, não são do meu feitio. Até posso fazer um esforço e distribuir palavras amenas, mas não soaria autêntico – seria, antes de tudo, uma persona que, a contragosto, eu teria que vestir.

Vejam só como as coisas se apresentaram para mim.

Anteontem, ao fim da tarde, enquanto eu corria eufórico para compras e afazeres de fim de ano, deparei-me com uma mãe rodeada por algumas malas e seu bebê; ela estava diante da porta de um grande supermercado daqui do centro da cidade. Tinha o rosto passadiço onde apenas os olhos castanhos destoavam num salto para muito além da máscara protetora. As mãos dela, mesmo ocupadas com a criança, pareciam inconstantes e pude notar certo desânimo por sobre os ombros.

Uma cena onde a carência parecia gritar. Creio que a criança dormia, pois dormir é o antídoto dos miseráveis, sobretudo quando famintos.

Mas não eram esmolas que ela queria.

Eu me aproximei, perguntei a ela se estava tudo bem.

– Ah, o rapaz parece ter cara de sabido. Com a gente, agora, está tudo bem, mas essas coisas de pandemia, ai, ai… Ela falou isto num tom calmo que contrastava com a aparência angustiada.

– É verdade, estamos cansados, estamos sem fôlego – eu respondi meio sem jeito.

– Sim, mas essas dores vão passar, as coisas vão mudar.

– A senhora e sua criança precisam de algo?

– Não, não, agradecida. Estou esperando meu marido, ele foi sacar dinheiro e comprar alguns biscoitos, estamos indo embora.

– Alguma viagem?

– Não, fomos despejados mesmo, coisas da vida, ela respondeu de forma límpida.

– Nossa, precisam de algo?

E enquanto eu perguntava aquela sensação de inutilidade crescia em mim.

– Bom, pra falar a verdade, meu marido e eu gostaríamos apenas de um banho. Moro no centro, estava pagando algumas contas, mas aguardei um pouco. Quando o marido dela chegou, um homem muito magro, alto, com cabelos longos – parecia uma dessas figuras de El Greco.

Eu os trouxe até meu sobrado. A criança chorou no caminho, as fraldas, de pano, estavam sujas. Pedi para que cada um deles tomasse um longo banho, sem pressa, mas o tempo era curto, eles tinham horário para ir até a rodoviária. A mãe e o pai cuidaram primeiramente do filho para, só então, se lavarem.

Tomaram banho juntos.

Eu coloquei a criança em meu colo, há muito tempo não segurava um bebê. Esboçou sorrisos, sentiu-se em braços estranhos, resmungou um pouco, mas logo recaiu no sono.

Da sala, ao pé da escada, pude ouvir vagamente as vozes de alívio que vinham de lá do alto, do banheiro; a felicidade que uma simples chuveirada proporcionava ao casal em pleno calor de dezembro onde, idiotamente, nosso país tropical vive repisando lendas sobre neve, pinheirinhos e casacos de lã sobre a pele de um velho rechonchudo.

– Muito obrigado, amigo, você nos fez um bem danado, disse o esposo.

– Verdade, eu me sinto renovada. Agradecida.

– Que é isso, gente, não foi nada, sério, eu respondi.

– Eu me sentia suja, não estava em condições de pegar um ônibus.

– Amor, vamos, o ônibus sairá em uma hora, vamos deixar o moço em paz.

– Bom, vou com vocês até a rodoviária, sem problemas.

– Muita gentileza a sua, mas não queremos atrapalhar.

– Faço questão.

Caminhamos pela avenida Nove de Julho, fomos até à rodoviária. Esperei a pequena família embarcar e imaginei o quanto todas as idas e vindas são mais tristes nesses finais de ano.

Eu não perguntei o nome deles, eles não perguntaram o meu. Driblamos o distanciamento social e as máscaras, nos abraçamos, mas conversamos pouco. Foi interessante.

Eu me senti tentado a imaginar o símbolo da sagrada família em fuga, mas sou niilista, um descrente que vê o mundo a partir das suas contradições econômicas, existenciais e políticas.

Voltei andando para casa, perfazendo os mesmos passos da ida. Pensando naquele casal anônimo e me sentindo vazio. Passei em frente outra vez do Grandioso Shopping da minha cidade: uma correria ensandecida, gentes e carros que amam essas malditas gavetas repletas de lojas, ar condicionado e benzidas pelo Deus-Dinheiro.

Senti-me um deslocado. Eu continuava andando, pensativo.

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E se aquele fosse Jesus, não o bebê, mas sim o pai. O Cristo real, talvez tenha amado Maria Madalena, tenha se apaixonado por uma mulher prostituída, humilhada. O Cristo real, talvez, viveu em fuga até o dia da sua tortura e condenação à morte. O Cristo real, talvez, deve ter dado muitos corres para sustentar, junto à esposa, não apenas a sua pequena família, mas também suas convicções de bondade e amor aos próximos, mas, sobretudo aos distantes. E esse Cristo real, que sobrevive como pura ideia, é hoje, com muita precisão, o menino negro que morre baleado; a mulher trans que é degolada nua, numa madrugada; o indígena que vê suas terras surrupiadas há mais de 500 anos; as mulheres que sofrem violências bestiais; o operário e a operária que provavelmente lotam os ônibus infectos de Covid-19; e todo esse mundo de gentes clandestinas, cujo colo é o próprio abismo.

Quando retornei ao meu sobrado verde, meu desprezo por toda essa infinita desigualdade estava no máximo.

Desabei.

Momentos depois eu liguei para os meus pais, mas, talvez por covardia, não disse que os amava.

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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