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PALETÓ

paletó

Paletó não era uma pessoa propriamente perigosa, mas causava algum receio na população. Era um sujeito franzino, loiro e um pouco enrugado e que usava sempre o mesmo paletó – daí o apelido, “Paletó”. Estivesse frio, calor ou muito calor, ele transitava pelas ruas de Casa Branca vestindo aquele paletó cinza. Algo entre o cinza e o bege, não sei dizer bem.

Conheci Paletó no julgamento de um caso de violência doméstica. Não lembro o que decidi, mas, pelo que se passaria depois, provavelmente o condenei, com base na Lei Maria da Penha. Depois daquele julgamento, aonde fosse, Paletó me seguiria. Parasse para tomar um sorvete, Paletó também pararia; fosse pagar contas, Paletó me acompanharia; estivesse na Casa Lotérica, lá estaria ele, na fila, atrás de mim.

Um dia, num fim de tarde, a Polícia Militar me informou que uma pessoa havia se instalado na Praça do Fórum e afirmou que só sairia dali depois que conseguisse falar comigo. Olhei pela janela e lá estava o Paletó. Disposto de tudo para me dizer algo. Chamei-o ao gabinete, então.

– Oi Paletó, tudo bem?

– Sim, senhor Juiz.

– Paletó, não sei se estou errado, mas tenho a impressão de que vi você me seguindo. Na sorveteria, no banco, na lotérica….

– Eu fiz isso mesmo, senhor Juiz.

– Ah é, Paletó. Mas me diga por que você tem me seguido!

A Lei Maria da Penha foi criada para proteger mulheres da violência doméstica e familiar. Mulheres, não homens. E isso tem uma razão de ser. Não que não exista violência de mulheres contra homens – claro que existe -, assim como existe violência entre homens e homens e até entre homens e nações. Contudo, a violência do homem contra a mulher é algo muito peculiar. É motivada por um indevido sentimento de posse que resulta na “coisificação” da mulher, que deixa de ser tratada como um(a) igual para ser rebaixada à situação de objeto do desejo masculino.

Vi mulher espancada porque queimou o arroz, porque o marido a viu conversando com uma amiga, porque ela não queria carícias, porque ela trabalha, porque ela tem sonhos e porque ela existe. Tantas são as que são violentadas apenas porque estão ali existindo. E isso não acontece com o homem. Homem não é espancado porque queima o arroz, porque conversa com um amigo, porque não quer carícias, porque trabalha ou porque tem sonhos. Ou porque existe. Não me consta.

– Senhor Juiz, eu tento falar há tempos com o senhor porque não está certo me condenar na Lei Maria da Penha.

– E por que não, Paletó? Veja bem, Paletó, se acha que minha decisão está errada, o senhor pode recorrer ao Tribunal de Justiça. Eles avaliarão se proferi a melhor decisão.

– Não, não, senhor Juiz. Eu não quero outra decisão. Eu quero uma Lei Maria da Penha para os homens.

Paletó não entendeu nada da razão da lei. E não teria conversa, ele iria me perseguir até que a “Lei Paletó” fosse editada.

– Paletó, é o seguinte. Eu não faço leis. Juiz não faz leis.

– Mas….

– Não temos o que conversar a esse respeito, Paletó….

– Mas….

– Não tem ‘mas’, Paletó.

Era tanto “mas” que eu dei minha cartada final.

– Paletó, quem faz lei é o Ministério Público.

Rio-me. Ele morria de medo do Promotor de Justiça. Não foi atrás dele nem de mais ninguém.

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Os Paletós por aí afora mostram o quanto a sociedade precisa se engajar. Não necessitamos da “Lei Paletó”. Precisamos, isso sim, evoluir a ponto de a Lei Maria da Penha soar desnecessária. Esse é o objetivo a ser seguido por todos que desejam uma sociedade igualitária na qual todos sejam – de fato – rigorosamente iguais. Ninguém mais igual que o outro. Um lugar no qual um arroz queimado seja apenas um arroz queimado. No caso aqui de casa, por mim mesmo queimado, porque quem cozinha sou eu.(Foto Marcos Santos/USP/Agência Brasil)

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É juiz de Direito

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