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SR. OTAVIANO

otaviano

Quando jovem, o Sr. Otaviano ouviu uma voz mandando que matasse alguém, e, movido pela alucinação, ele cometeu um homicídio. Após, foi levado a julgamento pelo Tribunal do Júri e considerado inimputável, em razão de esquizofrenia. Como consequência, foi internado em um estabelecimento psiquiátrico, sem previsão de alta. Era outubro de 1953.

Quase 60 anos depois, eu judicava na Comarca de Casa Branca e fui procurado pelas enfermeiras que cuidavam do Sr. Otaviano. Elas me relataram que, depois de tantas décadas, com quase 90 anos, o Sr. Otaviano se tornara uma pessoa sem periculosidade. Era amigo de todos e utilizava os recursos de sua aposentadoria para presentear os demais pacientes. Não obstante, os laudos juntados a seu processo atestavam sucessivamente que ele ainda seria uma pessoa perigosa – devendo, por isto, permanecer internado. Mas a verdade é que os peritos não estavam lá muito preocupados e foram fazendo cópia e cola dos laudos anteriores. Por décadas.

As enfermeiras, no entanto, tinham a plena convicção de que aquilo não era verdade, e me asseguraram, de todo modo, que o Sr. Otaviano não sairia jamais daquela instituição, pois não tinha família nem amigos. Foram falar comigo não para que ele fosse desinternado, porque isto sequer era seu desejo; foram porque o Sr. Otaviano lhes confidenciou que não queria morrer sem ver declarado, pelo Poder Judiciário, que, depois dos quase 60 anos internado, havia cumprido suas obrigações com a Justiça.

Fui então olhar o processo do Sr. Otaviano, que estava esquecido em uma prateleira do cartório havia muito tempo. Durante anos e anos, este processo não recebeu sequer um carimbo, e, quando os autos retornavam da perícia, vinham acrescidos do laudo padrão, copiado e colado, segundo o qual aquele senhor de quase 90 anos seria um sujeito perigosíssimo. Quisera eu ser perigoso aos 90 anos!

Resolvi enviar o processo para uma junta médica na cidade de Ribeirão Preto, para que o Sr. Otaviano fosse examinado por outros médicos – que olhassem para ele como um ser humano e não como mais um número escondido em folhas soltas e amareladas. E os autos voltaram com um laudo novo, com base no qual elaborei a decisão seguinte, que depois enviaria ao Sr. Otaviano:

“Sr. Otaviano, o documento de fl. 5 dá conta de que, em 14.10.1953, o Sr. foi julgado pelo Tribunal de Júri da Capital do Estado de São Paulo, e, neste julgamento, teve contra si aplicada medida de segurança consistente em internação. Por sua vez, o documento de fls. 21/22 indica que o Sr. foi internado em 20.2.1953, e assim permanece até hoje, quase 60 anos depois. Porém, Sr. Otaviano, recentemente, recebi a notícia de que, tanto tempo depois, o sr. passou a ser uma pessoa “dócil e colaborativa” (fl. 336), razão pela qual decidi avaliar melhor o seu caso (fl. 335vº). Eis que recebo um laudo atestando coisas muito positivas a seu respeito. Os Drs. Médicos Especializados concluíram que o Sr. “no ambiente em que mora permanece tranquilo e calmo” (fl. 360). Afirmaram, ainda, que, há 40 anos, o Sr. não tem “história de agressividade ou agitação” (fl. 360). Consta, também, que o sr. tem bom relacionamento e costuma ser generoso (fl. 361). E, diante disto tudo, os Drs. Médicos Especializados concluíram que o Sr. “encontra-se com a periculosidade cessada” (fls. 361/362). Isto quer dizer, Sr. Otaviano, que a internação do Sr. deve acabar. Aliás, Sr. Otaviano, o Supremo Tribunal Federal tem decidido que ninguém pode permanecer, para sempre, em medida de segurança, porque o nosso país não permite a prisão perpétua e não poderia admitir, tampouco, a internação eterna de alguém (veja-se, por exemplo, o HC nº 98360/RS). Por outro lado, isto não quer dizer que o Sr. tenha que deixar o Centro de Ressocialização, tendo em vista que, aos quase 90 anos de idade, será melhor que permaneça aí, onde fez amigos, sorriu, chorou e viveu. É com essa gente honrada, composta por médicos, enfermeiros e cuidadores, que o Sr. deverá conviver. Mas irá conviver sabendo que, aos 22 de maio de 2012, o Poder Judiciário do Estado de São Paulo entendeu que o Sr. cumpriu suas obrigações, não precisando, mais, carregar o fardo que o passado lhe deu. E por isto, Sr. Otaviano, declaro cessada a medida que, nos idos de 1953, o Sr. começou a cumprir. Para o seu bem, no entanto, determino que o Sr. continue no Centro de Ressocialização, como sugeriram os notáveis profissionais médicos que avaliaram o Sr. E determino, também, que esta decisão seja cumprida de pronto, cientificando-se todos acerca do que se sucedeu”.

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Ao ver chegar o carro do Poder Judiciário, Sr. Otaviano retirou o chapéu, em sinal de respeito, ouviu a decisão e chorou. Aos quase 90 anos, poderia finalmente seguir em paz.

Algum tempo atrás, a Oficial de Justiça que leu a decisão ao Sr. Otaviano me contou que ele ainda estava vivo. Em razão da decisão, foi-lhe permitido ir ao centro da cidade comprar guloseimas, que depois distribuía aos demais pacientes. Pôde, enfim, sentir o gosto da liberdade, que não é um direito absoluto mas tampouco pode ser restringida para sempre. É, afinal, o direito fundamental que nos faz humanos.(Foto: Google Imagens/jacarezinho.portaldacidade.com)

FILIPE LEVADA

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