No momento em que soube da morte do Papa Francisco, senti um aperto no peito que não consegui ignorar. Francisco não foi apenas um líder religioso para mim. Ele foi símbolo de algo muito maior: um pastor que ousou olhar para as margens, acolher os esquecidos e tocar em feridas abertas há séculos dentro da Igreja. Escrevo este artigo movido por um afeto sincero e pela necessidade de me posicionar diante da partida desse homem que, mesmo com limitações institucionais, deixou um legado inapagável.
O episódio que mais me marcou, e que marcou muitos ao redor do mundo, foi quando, questionado por uma repórter sobre pessoas LGBTQIA+ na Igreja, ele respondeu com simplicidade desarmadora: “Quem sou eu para julgar?”. Essa frase não foi só uma resposta, foi um terremoto dentro dos muros do Vaticano e um bálsamo para muitos corações feridos pela rejeição religiosa.
Minha escolha por escrever sobre Francisco não é aleatória, nem oportunista. Esse tema é profundamente caro a mim, pois minha história pessoal e familiar cruza diretamente com os debates que Francisco trouxe à tona.
Há oito anos, estive na Câmara Municipal de Jundiaí, usando a tribuna livre para protestar contra uma postagem homofóbica feita pelo então vereador Douglas Medeiros. Na época, ele publicou em sua página no Facebook absurdos como a associação entre homossexualidade e pedofilia, um discurso não apenas falso, mas profundamente cruel. O estopim dessa “briga” foi minha crítica nas redes sociais a um projeto de lei dele, que tinha um fundo nitidamente homofóbico. Douglas, que sempre se apresentou como católico defensor da família, foi confrontado por mim — também católico, também pai de família — que ousava lembrar que eu, como pai de um filho homossexual, não era menos família do que ele. Eu tinha, e tenho, certeza do amor de Deus pelo meu filho.
A resposta que recebi foi violenta, ofensiva e homofóbica. Mas o tempo colocou as coisas em seus lugares: anos depois, Douglas foi condenado por suas declarações homofóbicas.
O mais surpreendente foi o que veio depois. Comecei a receber mensagens de jovens que participavam do movimento católico Neocatecumenato (Movimento que eu participava na época). Eles contavam sobre a opressão que viviam em casa, sobre o medo de “sair do armário”, e sobre como, diante desse medo, viam apenas duas saídas: o suicídio ou o chamado a Levantar (ato de se mostrar disposto a vida religiosa ou ao sacerdócio) — um chamado nem sempre genuíno, mas usado como forma de sufocar sua orientação sexual. Muitos desses jovens me disseram que a forma como eu aceitei meu filho lhes deu esperança. Esperança de que poderiam, sim, ser amados por Deus e por suas famílias. Que não precisavam escolher entre sua fé e sua identidade.
Por isso, Francisco foi tão importante. Ele não podia mudar dogmas centenários de um dia para o outro, nem reescrever toda a estrutura da Igreja, mas ele fez algo que muitos antes dele nem tentaram: abriu espaços de acolhimento, de diálogo e de dignidade. Ele deslocou o olhar da Igreja das regras para as pessoas. E isso, por si só, foi revolucionário.
Mas Francisco não parou por aí. Ele foi um defensor incansável dos povos indígenas e da preservação da Amazônia, entendendo que cuidar da casa comum é um dever moral e espiritual. Em 2019, no Sínodo para a Amazônia, ele chamou atenção para a exploração predatória, denunciou o desmatamento e deu voz aos povos originários, que há séculos sofrem silenciamento e violência. Para muitos, foi surpreendente ver um Papa colocar o meio ambiente e os direitos humanos no centro do debate e não apenas nos apêndices das encíclicas. O Papa Francisco entendeu que fé sem cuidado pelo planeta é fé incompleta.
Além disso, sua preocupação com as pessoas em situação de rua foi notória. Ele ordenou que fossem construídos banheiros e chuveiros para os sem-teto nos arredores do Vaticano. Num gesto quase poético, mandou instalar um barbeiro para que essas pessoas pudessem resgatar sua dignidade. E foi além: em várias ocasiões, convidou pessoas em situação de rua para missas e refeições no Vaticano. Em vez de excluir os pobres dos rituais da Igreja, ele os colocou no centro. Porque, para Francisco, ser Igreja é ser pobre com os pobres.
E se ainda restavam dúvidas sobre a humildade desse homem, basta olhar para seu velório. Ele pediu um funeral simples, sem pompa nem luxo, em contraste gritante com a tradição vaticana de séculos. Francisco sabia que seu verdadeiro monumento não seria de mármore, mas de gestos, de sementes plantadas no coração das pessoas. Ele rejeitou os sapatos vermelhos de seda, usou uma cruz de ferro simples em vez de ouro, e mesmo morto, deu um recado claro: a humildade não é um acessório, é um testemunho.
O ato do Papa de autorizar a bênção a casais homoafetivos escandalizou mais os conservadores do que as denúncias de pedofilia que ainda assolam a Igreja. Isso, por si só, já revela muito da hipocrisia de setores fundamentalistas que preferem fechar os olhos para crimes hediondos enquanto vomitam ódio contra o amor entre duas pessoas do mesmo sexo. Francisco, com sua mansidão e firmeza, incomodou — e incomodar, nesse caso, foi necessário.
Claro, ele não foi perfeito. Ele tinha limites, enfrentava pressões internas e, muitas vezes, precisou recuar em alguns pontos. Mas ele abriu portas e janelas, e com isso deixou entrar um vento novo. Seu legado não será apagado tão facilmente, por mais que alguns tentem reverter suas pequenas, mas significativas, conquistas.
VEJA OUTROS ARTIGOS DE REINALDO FERNANDES
A SABEDORIA POPULAR EXPLICANDO O 8 DE JANEIRO
Fica a pergunta que paira agora no ar: e o próximo Papa? Seguirá a linha de Francisco ou cederá à pressão conservadora que sonha em voltar ao passado? Ninguém sabe. Mas o que sabemos é que, depois de Francisco, não dá mais para fingir que o mundo não mudou. Ele mostrou que a Igreja pode — e deve — ser espaço de misericórdia, inclusão e esperança. Ele nos ensinou que, no coração do Evangelho, está o amor, e não o julgamento.
Como católico, pai e cidadão, considero importante expressar minha posição sobre o falecimento do Sumo Pontífice. Esse tema não é só religioso para mim; ele atravessa minha história, minha luta, minha profissão e minha esperança. Francisco foi farol em meio a tanta escuridão. Que saibamos manter essa luz acesa. Que descanse em paz, Papa Francisco. E que do céu ele continue soprando ventos de mudança sobre nós.(Foto: Vatican Media/Agência Brasil)

REINALDO FERNANDES
É assistente social, pós-graduado em docência no curso superior e em Gestão em Políticas Públicas, tutor presencial na Faculdade Anhanguera, membro titular do CMAS, com experiência em políticas públicas, diversidade e inclusão social. Foi o primeiro coordenador dos Direitos das Pessoas com Deficiência em Jundiaí”
VEJA TAMBÉM
PUBLICIDADE LEGAL É NO JUNDIAÍ AGORA
ACESSE O FACEBOOK DO JUNDIAÍ AGORA: NOTÍCIAS, DIVERSÃO E PROMOÇÕES