A nossa PRIMAVERA

primavera

Tínhamos uma primavera no portão de casa, que se fechava como um pórtico e florescia o ano inteiro. Era daquelas bem fechadas, com flores brancas (as primaveras são brancas, vermelhas ou roxas), que duravam muito e deixavam o chão branco com suas pétalas. Porém, era de florada em tempo integra. A primavera embelezava a casa e dava um clima de afetividade e acolhimento. Todos elogiavam.

Minha mãe tinha muito zelo com ela, vivia adubando, verificando se tinham larvas ou pragas, aparando os galhos que se desviavam do semicírculo a que estava limitada e não permitindo que ervas daninhas crescessem em sua base. Era o xodó de dona Carmen.

A Vitória, por sua vez, curtia a sombra e se postava no portão, embaixo dela, para surpreender as crianças que passavam pela calçada ou mesmo o carteiro: ela odiava o pobre do carteiro que depositava correspondências em nossa caixa de cartas. Tirando os “inimigos imagináveis” da Vitória, a sombra era convidativa demais para ela, que ficava largada, de barriga para cima, só aguardando um descuidado passar pela frente de nosso portão, para se virar, num salto, e por para correr quem se aproximasse.

Percebem que a primavera era um integrante da casa? Fazia presença e trazia muita boa informação e sintonia para nós três que cuidávamos dela com muito carinho. Nossa casa era muito grande e o jardim se diferenciava na rua. Era muito bem cuidado e tínhamos várias espécies de flores e pequenos arbustos, tanto a azaléa como o manacá da serra faziam sua presença ser sempre comentada pelos amigos e vizinhos. Porém, a primavera se destacava pelo tamanho e pela florada intermitente.

Esta memória afetiva me remete às minhas duas grandes perdas. Minha mãe e a Vitória são eternamente recorrentes em minha Vida, sem que eu passe um dia descuidando das coisas que nos pertenciam ou das memórias que alimentamos, de maneira grata e alegre, pois fomos felizes demais naquele espaço.

Sobre a primavera, tem a parte menos fácil: o cuidado com a poda. Este era meu dever e, constantemente era lembrado de fazê-la, já que não era tarefa fácil nem tão prazerosa. Se conhecem, os galhos têm grandes e duros espinhos, muito pontiagudos, que causam perfurações doloridas e sangrentas. E lá ia eu, de luvas e tesoura, podar nossa árvore.

Entretanto, mesmo munido de todas as defesas possíveis, era inevitável ser perfurado e sangrar. Os furos feitos pelo espinho eram profundos e doloridos, desanimava pensar que outros furos mais seriam possíveis, mas seguia na minha função de “jardineiro” persistente. Persistência sempre foi uma das minhas marcas pessoais.

Mas vamos além: por que falar da primavera? Qual a relação entre aquele fato e um outro qualquer? Qual a relação da beleza da primavera e dos espinhos que a defendem com algo que nos toca no dia a dia? Então, por ser uma crônica, ela responde a alguns propósitos pessoais: sou a pessoa que mais pode relacionar aquilo que me faz sentido, mas vou tentar deslocá-los para seguirem comigo nessa reflexão.

Começaria o caminho pelas coisas que a Vida nos oferece: coisas belas, agradáveis, que impulsionam várias pessoas, multidões, até, para momentos mais difíceis. Entretanto, o belo e prazeroso nos empurra para a frente e para o alto. Dos mais exigentes ao mais sensato, todos gostamos e curtimos aquilo de bem e belo que nos acolhe ou que criamos para nos sentirmos melhor.

E os espinhos? Pois é, estas dificuldades são elementos que compõem todo e qualquer cenário de seres viventes comuns (eu sou um): seja na família, seja no trabalho, seja na saúde, seja na espiritualidade, em tudo aquilo que temos interação. E é claro, também, que eles são doloridos, causam dores desagradáveis e suas feridas nos perturbam demais, sempre. Porém são necessários para dimensionarmos cada uma de nossas intenções.

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A beleza das flores, a sombra da árvore, a paisagem humanizada é algo prazeroso, mas causa dor: as escolhas têm consequências e estas nem sempre são de todo maravilhosas, passamos por momentos de fragilidade, de indecisões e de perdas. São os nossos espinhos. Nossas dores servem para ressignificar nossas escolhas ou para ampliar as consequências delas, de modo a que venhamos a valorizar, mais ainda, cada uma de nossas etapas e decisões.

Quando penso na nossa primavera, robusta, florida, densa, intensa e forte não desassocio das frequentes espinhadas que levei. Isso não me fez abandoná-la nem a esquecer. Isso valorizou sua existência e fortaleceu minha jornada de modo a aprender que até as coisas que amamos nos causam dor. Até aquilo a que mais zelamos pode nos provocar ferimentos. E assim é a Vida. Assim é a Vida…(Foto: Youtube)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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